São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Filhos da Aids se aproximam da puberdade

AURELIANO BIANCARELLI
DA REPORTAGEM LOCAL

A primeira geração de crianças nascidas com o vírus da Aids está entrando na puberdade. O mais velho dos sobreviventes é um menino da zona sul de São Paulo que completou 10 anos em maio.
Graças a novos medicamentos e à experiência médica, mais de cem crianças paulistas contaminadas por suas mães têm hoje entre 8 e 9 anos. Na Casa Vida 2, onde várias crianças com Aids estão nessa idade, as meninas já falam em calcinhas de renda e querem um banheiro separado dos meninos.
Médicos e educadores dizem que está na hora de contar a essas crianças que elas têm Aids e que é preciso prepará-las para o início da vida sexual. Mas ninguém sabe como fazer isto.
Oito anos atrás, ninguém imaginava que os filhos da Aids viveriam tanto. "Hoje já imagino o momento em que um deles se casará ou entrará na universidade", diz a médica Marinella Della Negra, que desde 1985 acompanha crianças no Hospital Emílio Ribas.
Os que lidam com estes sobreviventes dividem um misto de alegria e pânico. "É uma etapa feliz, mas preocupante", diz Marinella.
"Estamos todos apavorados", diz Teresinha Reis Pinto, presidente da Apta, Associação para a Prevenção e Tratamento da Aids. "Os adultos não estão preparados para lidar com o adolescente, com ou sem Aids."
A psicóloga Ana Maria Baricca, que trabalha com doentes do Emílio Ribas, diz que a angústia maior está nos adultos e que é preciso respeitar o ritmo da criança.
Quando o doente tem mais de 14 anos –infectado por sangue ou sexo– Ana Maria costuma falar francamente. "É preciso dizer ao adolescente que tem de usar camisinha. Ele precisa assumir suas responsabilidades."
Mas quando se trata de crianças entre 7 e 10 anos, fica difícil falar em prevenção. "Nesta idade, os meninos costumam brincar de troca-troca e apostam quem faz xixi mais longe", diz a psicóloga Liany do Prado, do Grupo de Orientação Sexual Infantil.
Mesmo que os meninos ainda não tenham esperma, a penetração poderia implicar um risco de contágio remoto, diz Liany. O infectologista Caio Rosenthal considera esta hipótese apenas "um delírio".
"São brincadeiras de criança. Não há penetração nesta idade", afirma. Na literatura médica mundial há registros de crianças e pré-adolescentes infectados em abuso sexual, mas não há casos de contágio entre crianças.
A preocupação dos que lidam com essas crianças é saber o que dizer à medida que vão crescendo. "Estamos cheios de perguntas sem respostas", diz Teresinha. O espanto ocorre no mundo todo.
Na Europa e nos EUA, as crianças com Aids também estão entrando na pré-adolescência. Um garoto americano de 14 anos seria o mais velho sobrevivente por transmissão vertical no mundo (de mãe para filho durante a gestação ou o aleitamento). "É um aprendizado de todos nós", diz Marinella. O padre Júlio Lancelotti, responsável pela Casa Vida, abriu uma segunda casa para abrigar as crianças mais velhas.
A psicóloga Maria Conceição Pereira, contratada para trabalhar com as crianças, está lidando com o problema do abandono. Quase todas as dez crianças da casa não têm pai ou não têm notícia deles.
"A questão da sexualidade ainda não foi colocada", afirma Conceição. Liany do Prado diz que é preciso se adiantar e falar com as crianças. "Elas já estão atentas ao sexo. É preciso falar com sensibilidade para que não se sintam ainda mais diferenciadas."
O que se sabe é que as crianças têm consciência de que alguma coisa diferente está acontecendo. Nos desenhos que algumas fazem, elas próprias aparecem isoladas enquanto outras estão brincando.
A consciência da discriminação por causa da doença é outro ponto difícil de lidar, diz Conceição. Para este mal, os especialistas acreditam que, além da terapia, esta geração precisará de muito carinho.

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