São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Direito se materializa em cada mapa

WALTER CENEVIVA

Em agosto de 1993, muito antes que o Atlas da Folha fosse o sucesso que veio a ser, escrevi sobre o retrato de poder e de direito que existe em cada mapa. Foi nesta mesma coluna, servindo-me das cartas geográficas como um dos exemplos de expressão material do direito.
O direito se mostra aos cidadãos sob várias formas, das quais a mais perceptível é o aparelhamento do Estado, através dos órgãos de sua administração. De um modo geral, porém, vivemos, sem atentarmos para a aplicação objetiva do direito. Se, por exemplo, paro diante de um balcão de café, no bar da esquina e indico, com o dedo, o número um, não estou me referindo a uma certa marca de cerveja, mas propondo um contrato: sirva-me um café que estou pronto a saldar o preço respectivo.
Mas, é evidente que não passará pela cabeça de ninguém que, ao pedir o café, estou formalizando um contrato de compra-e-venda, previsto nas leis do país. Embora esteja.
Com o mapa, a vinculação é impossível de afastar. A Folha tem destacado que seu Atlas é atualizado. O verbo atualizar significa pôr em dia, tarefa que, num atlas, é complicadíssima em virtude das constantes variações do direito internacional e mesmo do direito interno dos países. O mapa correto tem direta pertinência com um dos conceitos jurídicos mais importantes: o conceito de soberania.
Atualizar um atlas hoje envolve visão inteiramente diversa da que servia a humanidade nos mapas de três ou quatro séculos atrás e mesmo diferente da que predominou no século passado. Assim é porque os continentes, em sua inteireza, estão demarcados por fotografias colhidas em satélites. Substituiu-se as dúvidas antigas pela certeza fotográfica. Assim é também porque os acidentes geográficos estão definidos em levantamentos aerofotogramétricos de absoluta precisão. Mesmo as grandes riquezas minerais ou agrícolas (e os direitos a que correspondem) estão razoavelmente levantadas.
O problema da atualização encontra sua maior dificuldade nas linhas de fronteiras. Aí cessam as certezas. São substituídas –num dinamismo crescente– pelos choques de forças, ou seja, pela dúvida sobre o direito vigente. Mesmo a velha Europa, onde era de crer que tudo estivesse estabilizado, vem passando por mudanças constantes, que pouparam os países escandinavos e os ibéricos. A França e a Alemanha (pós-Tratado de Versalhes e pós 1945), a Polônia, a Tcheco-Eslováquia, a Áustria e mesmo a Itália (com e sem Trieste) são exemplos. A África e a Ásia, então, nem falar. Nada é estável.
O significado da comunidade econômica européia introduz variáveis jurídicas, com o surgimento de um direito supranacional efetivo. Não o direito internacional clássico, que sempre foi disfarce para a imposição do mais forte. Mas, supranacional. Aplicável a todos os países, cada um deles cedendo parte de sua soberania, a benefício do interesse comum, superando fortes resistências de caráter nacionalista.
Naquele comentário de um ano atrás, referi um livro de Denis Wood ("The Power of Maps", Guilford Press, 248 páginas) no qual esse autor diz que o mapa representa, pelo que contém –e mesmo pelo que omite– a acumulação de pensamento e trabalho do passado. O mapa é o presente do passado e do futuro. Não só o presente geográfico, geológico ou topográfico, mas também o presente do direito das nações, dos estados, dos municípios, dos governos, das religiões, das riquezas.

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