São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Um suave aroma de Narciso no ar

Gerald Thomas narra a realização de "Tracing Narcissus"

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Não vá com muita sede ao pote", disse o diretor artístico do teatro de ópera, quando eu saía de seu escritório. Tanto o compositor como eu demos um daqueles sorrisos bem idiotas e, depois de apertar sua mão profusamente, dirigimo-nos ao bar. O que ele queria dizer era: "não se deixe levar demais por esta idéia. É muito... arriscado. O que ele realmente deveria ter dito era: "vai, garoto, e se enterra nesta história maravilhosa". E, embora ele não o tenha dito, eu o fiz, de qualquer forma.
Claro, chegar ao título foi uma das coisas mais difíceis, mais excruciantes que já se viu. Depois de semanas de idas e vindas para a Áustria, em busca de idéias, um suave aroma de Narciso finalmente surgiu, somente porque estes encontros pareciam se desenvolver em torno de um personagem cuja fé em sua própria consciência tinha chegado a um final exaustivo. Ainda assim ele teria de descobrir maneiras de povoar seu microcosmo com um sortimento de auto-imagens adulteradas, afim de que a totalidade de sua existência, tudo que sua memória jamais havia registrado, todas as sensações que jamais o haviam atravessado, reverteriam num único, maciço compêndio, que poderíamos chamar de "Narciso" moderno.
Este "Narciso" teria de ser um fenômeno do mundo de hoje e, enquanto capaz de sistematicamente se desvencilhar de qualquer crença em qualquer sistema, teria de, ao final, chegar a nada menos que si mesmo. Digo que teria de ser do mundo de hoje afim de fazer a ópera menos mítica, mais pé no chão, e carregada do elemento mais angustiante da descaracterização humana: a informação.
Eu havia, afinal, sido dominado por este "tipo" de idéia durante anos. "Joseph K" em "O Processo de Kafka", não era nada mais que isso. Os personagens de Beckett, mesmo quando destituídos de qualquer vida social, não eram nada mais que isso. Eu finalmente teria a oportunidade de encenar uma peça que sempre quis encenar –e também com as boas graças de um imenso orçamento.
"Você me baniu da vida,
Vai me banir da morte?"
Depois de meses trabalhando separados e conversando via fax, o que emergiu, como sempre, foi uma série de histórias auto-suficientes, mas interligadas. Subitamente, tudo que eu estava lendo parecia, de alguma forma, falar direto à ópera que construíamos.
Meu título provisório, então, era "E uma sombra flutuou, corrente acima"; talvez um título desajeitado e estranho, longo demais para que uma platéia alemã dele se lembrasse. De qualquer forma, eu perseguia a idéia de mapear a vida de um personagem suficientemente interessado em utilizar a própria vida como fonte para a construção de um espelho do inferno e, ao mesmo tempo, com um dom incrível para articular as nuances da "devastação do caráter" e o "amor por si mesmo".
Meus encontros com Beat Furrer continuaram por mais de um ano, até que tivéssemos definido o corpo principal da ópera, embora sua duração e estrutura de composição ainda permanecessem um mistério para mim por mais seis meses. Eu naturalmente comecei a chamá-lo de"Tracing Narcissus" (Na Pista de Narciso), como se o elemento de construção de uma figura permanecesse presente mesmo depois do nascimento da figura. Não sei porque, mas pareço ser tomado por uma idéia quando sua "frase de efeito" é auto-explicativa. Chamando de "Na Pista de", eu me permitia narrar a vida ficcional de alguém feito de muitas outras vidas conhecidas, sem medo de entrar e sair de personagens como o homem de Knut Hamsun no livro "Fome", ou o clone de Stephen Toulmin, ou mesmo os numerosos escritores e investigadores inventados, vítimas do acaso e de uma trágico inundação de influência em todas as histórias de Paul Auster. Ainda assim, ancorando-me num mito narcisista, pensei, destilaria a imagética de palco a um ponto de simplicidade que eu achei bastante atraente.
Em meados de outubro de 93, Beat tinha produzido uma gloriosa fita de uma hora do que viria a ser nosso primeiro ato. O local do encontro havia mudado de Viena para Nova York (graças a Deus) e, em vez de sempre estarmos em quartos de hotel e cafés, passamos a trabalhar aqui em casa, no doce ambiente da domesticidade. Nossa paz não duraria muito. Juntou-se a nós mais tarde Holm Keller, o dramaturg-Duracell, que perguntava tudo, da construção dos personagens à formação da orquestra. A intervalos regulares de cerca de 20 minutos, Holm gritava: }Parem! Esta cena aqui, onde o coro entra pela direita do palco, não será possível. A isto se seguiria uma estranha sequência de explicações, absolutamente sem relação com a história em si. Mas é uma premiere mundial, pensei, há muito dinheiro envolvido. Obviamente a equipe tinha de entender tudo.
Beat e eu simplesmente encontramos maneiras de mentir sobre horários, e começamos a evitar os encontros oficiais. Em vez disso, engajamo-nos num brainstorm intenso e sem perturbações de duas semanas, buscando maneiras de fundir música e encenação, enquanto criávamos um monstro.
No princípio de novembro de 93, terminamos. Eu tinha escrito cada minuto de encenação imaginável e Beat tinha a desconfortável tarefa de compor a peça completa em menos de seis meses. Holm tinha de analisar e pôr os pingos nos "is". Fernanda tinha de vesti-los.
"Na Pista de Narciso" estava agora completamente pronta, exceto pela parte mais importante, os ensaios. Nós havíamos gasto os primeiros quatro meses do ano desenvolvendo o cenário, com viagens mais que desejavelmente frequentes entre Nova York, Brasil e Viena, acertando detalhes técnicos, desenhando a iluminação e brigando por centavos de um enorme orçamento. Enquanto escrevo este texto, em 21 de julho, num tórrido verão novaiorquino, uma tediosa lista de refletores e varas de luz onde eles serão pendurados despeja de meu fax.
É a história sem fim da realização de uma ópera. Quando você pensa que pode imergir nos aspectos literários de sua própria, pequena obra-prima, uma embaraçosa lembrança como o nome de contra-regragem invade suas horas de sono e vigília, consumindo a maior parte de sua boa-vontade. E quando até esta parte foi acertada com uma precisão de relógio, de elementos sincronizados; quando até o tempo que um ator leva para correr do ponto A ao ponto B está previsto no roteiro; quando os pôsteres, as mudanças de cena, as notas do programa, o material de imprensa, as trocas de roupa, o elenco, a coreografia, a projeção de TV ao vivo, os biscoitos de fumaça nas panelas e vasilhas na cena da cozinha; os pregos na parede, a dificuldade da soprano romena em entender o pragmatismo do tenor americano, o extra bósnio que não fala inglês nem alemão, as varas de luz, e as cortinas que só têm três velocidades; o barítono alemão que passa a vida a beber e comer; a cafeteria cheia de pessoas de aspecto estranho do coro, que odeiam você por que é jovem e ganha melhor, o quase colapso nervoso do compositor, porque a maquinaria do palco faz barulho demais –justamente nas partes mais silenciosas; quando tudo isso foi resolvido, o pior ainda está para vir: os ensaios. Que começam a 23 de agosto. Deseje-me sorte.

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