São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O rastro de um mito no mundo de hoje

GERALD THOMAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

X sentiu que seu apartamento fora subitamente amaldiçoado. Assim, caiu na rua. Tudo aconteceu muito rápido. Num momento ele estava, como sempre, sentado à sua mesa, escrevendo. No momento seguinte houve um salto e ele se foi, deixando a porta entreaberta atrás de si. Pela janela aberta uma súbita rajada de vento espalhou o caos por todos os seus preciosos papéis. Ele corria escada abaixo. E corria rápido.
Ele era filho de um casamento tumultuado. Seu nascimento fora particularmente complicado e fora do comum. Nascera em casa na presença de uma, por assim dizer, platéia. Sim, seus pais separados haviam convidado pessoas para assistir o evento e o caso foi tratado como a mais profana experiência. O pai, em outro quarto, divertia os convidados, soltando piadas grosseiras e bebendo cerveja. A mãe, estendida numa cama improvisada, jazia no centro da sala, cercada de parteiras e convidados, bebericando vinho e fofocando. Não fosse pelos gemidos e pela dor excruciante da mãe, mais pareceria um vernissage. E, em meio a este ambiente, X nasceu. Subitamente, lá estava ele, miúdo, molhado e mirrado.
O pai só emergiu do quarto ao lado quando chegou a hora de segurar o bebê de cabeça para baixo. Sem maiores cuidados, ele o agarrou pelos tornozelos molhados e lentamente levantou o braço, como se o bebê fosse um troféu. Só então realmente olhou para o filho pela primeira vez. Ali estava ele, em todo o seu desajeitamento, os tornozelos do bebê quase escorregando entre as mãos do pai, enquanto os convidados aplaudiam e rompiam em ocasional histeria. Então, finalmente, veio o momento que todos esperavam e, cercado por uma aura de macabro silêncio, ele bateu no traseiro da criança com uma força incrível.
Todos esperaram pelo berro. O bebê se contorceu, pendurado na mão do pai, mas não emitiu um único som. As pessoas fizeram um silêncio de expectativa. A criança estava ficando de uma cor vermelho-escura, mas se recusava a derramar uma lágrima, ou mesmo chorar. Atônito, o pai aplicou-lhe mais um golpe. Nenhum som ainda.
Depois de alguns segundos de um silêncio infinito, a criança conseguiu libertar os tornozelos das mãos do pai, e se esborrachou no chão. A cena havia rapidamente se transformado num pastelão mórbido. Ouviu-se um suspiro coletivo. Então, antes que alguém pudesse alcançá-la ou tentasse fazer qualquer coisa, a criança rompeu em estranhos sons. Ninguém os reconheceu, a princípio. O pai foi o primeiro a se inclinar, numa tentativa de de erguê-lo. Num espasmo abrupto, retorcido, como se querendo interromper o ato de seu pai, o minúsculo recém-nascido ergueu a cabeça e disse estas bem-ditas palavras : "Por favor, não me perguntem nada. Um dia, escreverei sobre isto".
Desnecessário dizer, os convidados ficaram atônitos, mudos. Uma mulher de meia-idade simplesmente desmaiou. Outra mulher, de cerca de 30 anos, começou a ficar asfixiada e teve de ser tirada da sala. Um homem que estava de pé, perto do bebê, se moveu como se quisesse estrangulá-lo, e teve de ser subjugado por outros dois. Outro homem virou as costas para a cena, suavemente, e começou a andar de forma monótona. Primeiro ele deu de cara com a porta fechada, depois, abrindo-a no mesmo ritmo monótono, continuou a andar e desapareceu na noite.
O pai parecia ignorar a reação geral, e ficou ali, a cabeça meio inclinada. A mãe simplesmente desmaiou depois do nascimento, mas ninguém notou.

X teve um flash rápido de seus primeiros momentos, enquanto corria escada abaixo. Ele havia alcançado o térreo em 20 segundos; um recorde. Nada mau, considerando que morava no 17º andar.
Pouco antes de romper na calçada, pela saída de incêndio, X finalmente recobrou o autocontrole, correndo o polegar pelos cabelos e tentando recuperar o fôlego. Empurrou a barra da porta, e estava na rua. À medida que percorria as primeiras jardas, ele foi invadido uma sensação estranha, desconfortável. Estava certo de que todos podiam ler sua mente. Achou que todos sabiam o que lhe tinha acontecido no nascimento. X havia deixado sua casa sem sapatos e sem camisa. Em cima de uma lata de lixo, encontrou uma malha dos Rangers (time de hóquei), que rapidamente pegou e examinou. Sob ela, notou um livro semidestruído com uma capa azul-pálido, cujo título dizia "Clássicos Literários". Por um breve momento, X esboçou um sorriso e teve um flash da idade real do planeta, e quantos milhões e bilhões de anos levara para se formar. Então, à beira de um sorriso, revisou a noção da palavra }clássico.
O fato é que o apartamento de X não estava amaldiçoado. Ele vinha escrevendo incessantemente havia semanas, tentando cumprir um prazo que estava apenas a um dia de distância. Estava escrevendo um ensaio sobre a "Ressonância Mórfica e os Inauditos Poderes da Abstração", a ser publicado por um prestigioso suplemento literário, quanto houve uma breve interrupção de eletricidade. Houve um blecaute no edifício inteiro, assim como seu computador. E por um breve momento, X finalmente viu o que vinha evitando havia anos: na tela escura do computador, viu um reflexo de si mesmo e o que notou, mais do que tudo, foi que seu cabelo tinha se tornado grisalho. X havia se acostumado a jamais se olhar no espelho. Agora o hábito tinha sido quebrado. Foi quando começou a correr.
o tempo mudou, abruptamente. Trovão, raio e chuva vieram todos de uma vez. X se lembrava de ter saído correndo do apartamento, deixando a janela aberta. Mas ele não se importou. As pessoas corriam para se abrigar, enquanto que ele, descalço, parecia ser invadido por uma tênue sensação de alívio. O tempo e as preocupações pareciam ser suspensos cada vez que o os elementos causavam estragos no mundo. Entre filas de pessoas correndo à frente e atrás, e garotas dando risadinhas à medida que iam ficando molhadas, X novamente distinguiu seu rosto, refletido na janela de um Mercedes, parado na esquina. Aproximou-se lentamente dele, como que tentando enfrentá-lo. Ajoelhou-se diante do carro, ao chegar perto dele. Agia estranhamente, torcendo a cabeça até onde conseguia, sem perder de vista suas costeletas, a ára mais afetada pelos cabelos brancos. Então colocou ambas as mãos sobre a testa, como se para esticar a pele e revelar a raiz dos cabelos. Isto o encorajou a fazer estranhas caretas. Visto de uma certa distância, era certamente um homem que tinha perdido a razão. X permaneceu ali por algum tempo, arregalando os olhos o máximo que podia e parecendo cada vez mais bizarro.
A polícia tinha sido chamada, pois, parecera a um passante, um homem descalço tentava arrombar um Mercedes. Para seu infortúnio, naquele preciso momento, a realidade de X clareou em sua mente, e num arroubo de lucidez, X olhou para seus próprios olhos furiosos na janela, e com o punho, a estilhaçou. A polícia estava a cerca de nove ou dez pés dele. X foi agarrado pelo pescoço, seu corpo molhado e a mão ensanguentada lembrando a criança no momento de seu nascimento. Ele foi atirado ao chão, os dois policiais com os joelhos em suas costas, enquanto lhe torciam ambos os braços. X, com o rosto numa poça de água e vidro quebrado, tentando em vão enunciar uma palavra, mas em vão. X estava certo de que a polícia havia simplesmente pego o homem errado, mas não havia nada que pudesse fazer. Enquanto jazia ali, X pensou em sua vida, em suas conquistas e fracassos, o sentido daquilo tudo. Foi então que lhe ocorreu a idéia de que talvez lhe estivesse faltando um parceiro, outro X. Alguém que poderia levá-lo a uma vida mais exteriorizada. Alguém que tivesse outros interesses além dele mesmo, afinal, X havia gasto toda a sua vida compilando argumentos para o seu caso, tentando explicar a si mesmo. E precisamente neste momento, quando uma explicação se fazia necessária, ele não conseguia articulá-la.

Texto Anterior: Um suave aroma de Narciso no ar
Próximo Texto: Um tratado da ambivalência
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.