São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Um tratado da ambivalência

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Pode-se dizer que Proust, Gide e Valéry formam o triângulo equilátero da nova literatura francesa." Senso comum em 1927, quando Walter Benjamin escreveu estas palavras, o fato é que o triângulo, hoje, está longe de ser equilátero. Proust e Valéry pertencem ao cânone central da literatura do nosso século, mas Gide é pouco lido e pouco estudado e mais parece um fenômeno da vida cultural francesa do que da literatura propriamente dita. Não é fácil, agora, saber o que dizer de Gide.
Romancista, contista, teatrólogo, tradutor, editor, crítico, ativista político, ensaísta e antropólogo, Gide foi, sem dúvida, a figura literária em maior evidência na França desde os anos 30 até sua morte em 1951, atingindo uma dimensão que nem mesmo Malraux ou Sartre jamais atingiram. Sua regra de uma integração absoluta entre o escritor e a escrita, –a idéia, já definida no primeiro, livro, o "Tratado do Narciso" (1891) de que "não há diferença entre as regras da moral e as regras da estética"–, estabelece um lema da literatura de experiência, ou engajada, da qual, de mil modos e sempre com vigor, Gide foi um dos grandes praticantes.
Dedicado a Valéry, o "Tratado", ou "Teoria do Símbolo", é seu único trabalho de teoria literária. Redigido num dialeto ornamentado, característico do simbolismo, não deixa de estabelecer um contraste quase clássico com seu antecessor imediato, "Os Cadernos" de André Walter, romance-manifesto de liberação total, publicado anonimamente, e que promete as vitórias do desejo sobre o conhecimento. À sua maneira, o "Tratado" já mostra um Gide mais próximo da tradição dos moralistas –La Bruyére, La Rochefoucauld, até Pascal–, com quem, anos mais tarde, seria frequentemente comparado.
Mescla de mito grego com legenda bíblica e alegoria simbolista, o "Tratado" obedece ao preceito de Mallarmé da "interferência dos gêneros", como condição de uma literatura consciente, que exorciza ilusões. A abundância de gêneros, que marcaria a carreira de Gide como um todo, já está presente aqui em escala reduzida, mas nem por isto menos funcional. O "Tratado", porém, como tantas outras teorias, não é exatamente o que anuncia –não é uma teoria do símbolo, mas sim de um outro sentido peculiar, não simbólico da literatura, cujas virtudes só hoje vão se esclarecendo.
Se o mito de Narciso nos narra a história da identidade, constituindo-se a si mesma em uma imagem especular, esta história, aqui, é também, a de certas divisões que já marcavam a poesia desde fins do século 18. "Todo fenômeno é um símbolo da Verdade, que está por trás das formas... mas o fenômeno se prefere a si mesmo".
Esta frase, como a narrativa da alma de Narciso frente ao rio do tempo, incapaz de decidir quem forma quem, resume um outro drama, no centro da poesia romântica e de todos os seus descendentes, incluindo o modernismo. Sua expressão mais comum é a de um hiato entre a consciência e as coisas, que a linguagem menos vence do que faz aparecer. A duplicidade se estabelece, então, como condição do escritor.
Para um autor moderno, como Gide, essa duplicidade é também sexual, e a impossível integração do símbolo –a inatingível "volta ao Paraíso", um estado onde "tudo é aquilo que parece" e cada palavra é igual ao seu sentido –ganha conotações obscuras, em contraponto com as divisões apontadas pela teoria do narcisismo de Freud.
Não há espaço, aqui, sequer para uma análise superficial do texto, mas pode-se adiantar algumas conclusões. Para Gide, como para Novalis e os demais românticos, o "eu" que fala vestido de Narciso é o próprio emblema da dimensão figurativa da poesia. Rejeitando o modelo clássico do símbolo, da integração entre interior e exterior, bem como as alternativas de uma dicção sublime, Gide constrói um idioma heterodoxo, uma linguagem que não é mais da imitação ou representação das coisas ("não há nem margem, nem rio", começa o texto) e sim da alegoria, o que ele chama de "orgulho da palavra", sinônimo do que na literatura é interpretação e leitura. E é por este motivo, pela aceitação de um universo puramente gramatical como condição da consciência, que o artista "deve sacrificar-se, de antemão, a si mesmo".
Mas se o escritor ainda conta "encontrar um lugar para si na sociedade humana" (como diz W. Fowlie), este sacrifício não é um motivo simples para comemoração. E se este escritor, mais tarde, resolve fazer da literatura um campo de reflexão sobre a homossexualidade, ou sobre o comunismo, ou sobre o racismo, divisões e sacrifício adquirem ainda outro peso. Não será, então, por este motivo que Gide vai escrever seus melhores textos sob a forma de autobiografia, ou de literatura engajada? Porque é nestes casos –onde a representação é simultaneamente tema e forma –que se revela melhor o problema da literatura, num estágio tão autoconsciente e irônico da sua história.
Talvez isto explique, ao menos em parte, a dificuldade de incorporar Gide às nossas genealogias. Gide não cabe nem ao lado de Rilke, ou Valéry, poetas igualmente concentrados sobre as falências da representação, nem de um Sartre ou Malraux, moralistas políticos, francamente não-poéticos. Entre uns e outros, Gide é de uma vez só o apólogo da consciência poética voltada para o lado de fora e o consumidor do mundo como instrumento de interiorização, que é onde se tocam a poesia e a política.
Sua idéia de uma literatura "falsa", do escritor como "moedeiro falso", é uma proposição moral: exibir falsidade para cancelar ilusões. Mas aponta também para um dilema não-resolvido da nossa própria literatura e talvez de todas as literaturas, a dificuldade de conciliar as necessidades de um homem com as da sociedade. É uma ambivalência mais aguda ainda no nosso tempo, talvez, do que no dele, como demonstram os vários esforços recentes para se combinar Marx e Freud.
O desafio de Gide, sua versão de Narciso, não é outra coisa, afinal, senão a tentativa de reconstruir uma identidade para si mesmo, sem se alhear e sem se render às divisões e falsidades da literatura e da vida.

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