São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Os aforismos explosivos de Schlegel

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando o assunto é literatura, filosofia ou um casamento dos dois, os alemães nunca foram de jogar conversa fora. Eckermann anotou escrupulosamente o que Goethe dizia sem compromisso e até hoje lhe somos gratos. Às vezes, o registro está em cartas, como as que documentam a relação entre Schiller e o autor do "Fausto". Outras, assumiu uma forma romanceada, um diálogo platônico em que amigos reunidos discursam sobre a natureza da arte.
Esse é o caso de "Conversa sobre a Poesia" do mais novo e mais influente dos irmãos Schlegel, Friedrich (1772-1829). Publicada originalmente na "Athenãum" –revista literária dos primeiros românticos alemães, aparece agora em português, ao lado de outros fragmentos críticos do autor.
Diferentemente do filólogo absorvido pelo culto aos gregos da juventude e do católico convertido do fim da vida, o Schlegel dos anos intermediários tem um caráter duplo, polinizador e polêmico. Sua influência, enorme, preservou-se modernamente (Benjamin na "Origem do Drama Barroco" e Lukács em sua "Teoria do Romance" escreveram sob forte impressão de estudos schlegelianos). Do leitor, Schlegel captura a atenção primeiro pelo estilo, particularíssimo. Ao teor explosivo dos fragmentos, aforismos condensando verdades paradoxais, somava-se a vontade da elaboração do sistema e uma avaliação interessada da produção moderna –"o crítico é um leitor que rumina".
Além da estranheza formal, seus escritos combinavam um idealismo místico com uma valorização da sensibilidade característica da virada do século 18. Arte, poesia e filosofia se identificam cada vez mais, aproximando-se da religião –"o homem é uma retrospecção criadora da natureza em si mesma". Criar é conciliar instinto e intenção. Daí a novidade de sua crítica, marcada pela aspiração elo absoluto apreendido a partir do contingente, pela aproximação entre poesia, apresentação sensível, intuitiva e lúdica do objeto desta busca, e filosofia, pelo subjetivismo individualista, cioso do valor único do gênio e pela colaboração fluida entre os membros de uma geração.
A "Conversa" documenta uma redefinição-chave dos termos da disputa travada na teoria poética no século 19: a disputa entre Antigos e Modernos cede espaço à oposição entre clássico e romântico, trazendo com ela uma concepção inovadora da história literária, aberta, voltada para um futuro a construir.
O molde da sinfilosofia (filosofia em grupo, banquete de idéias) permitiu a Schlegel ocupar-se simultaneamente de várias questões que viriam a assumir papel central em toda crítica moderna. Em discursos atribuídos a alter egos de Tieck, Novalis, Schelling e dos Schlegel e suas mulheres, desenvolveu tópicos diversos. Assim, ora se ocupa da necessidade moderna de uma mitologia própria, que alimente a literatura dos novos tempos como o panteão clássico abasteceu Homero, ora se volta para uma redefinição da hierarquia dos gêneros, destronando a tragédia em nome da forma irônica por excelência, o romance.
O fio condutor é a própria noção da ironia, herança schilleriana cultivada com carinho por Schlegel. Reflexiva, a literatura deve fazer conviverem uma descrição da realidade, "um espelho do inteiro mundo circundante" e uma visão exterior e desinteressada, "suspensa nas asas da reflexão poética" daquilo que expõe. Aponta para a autolimitação consciente, condição essencial para que a busca do absoluto, impossível e necessária a um só tempo, se realize –"quando sonhamos que sonhamos, estamos próximos de despertar."

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