São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Era pós-industrial cria nômades à procura de trabalho

A nova divisãodo trabalho vai provocar migrações aleatórias

PAUL VIRILIO
ESPECIAL PARA O "LIBÉRATION"

As mudanças atuais na natureza do emprego (trabalho em regime de tempo parcial, desemprego estrutural, etc) vão acarretar, num prazo muito curto, uma reviravolta na natureza da habitação social. Os contratos de trabalho "por tempo indeterminado" de antigamente provocavam migrações alternadas perfeitamente previsíveis e favoreciam a implantação de habitações sociais nas proximidades dos locais fornecedores de empregos.
Já os contratos de trabalho "por tempo determinado" e a futura repartição do trabalho –em outras palavras, o desemprego– vão provocar migrações aleatórias, absolutamente incompatíveis com a fixação domiciliar dos trabalhadores da era "pós-industrial".
Comparada com esta, a deportação, no século 19, do campesinato em direção às cidades da Revolução Industrial vai parecer um trajeto irrisório. O teletrabalho e a deslocalização do emprego vão resultar, daqui a pouco, no surgimento de um novo tipo de "turismo social". Os "travelers" ingleses já o prefiguram em seu país, em meio à indiferença generalizada.
Se não tomarmos cuidado, portanto, vamos assistir dentro em breve ao surgimento, em nosso continente, de um novo tipo de refugiado. Depois do estrangeiro, do imigrado, do refugiado político que se beneficia do direito ao asilo (condicionado à apresentação de seu passaporte), veremos surgir em nossos países desenvolvidos o refugiado social autóctone.
Com relação a este assunto, vale mencionar a redução em 50% do custo dos quartos dos hotéis Ibis concedida aos desempregados e também o lançamento, em Marselha, dos "tickets hotel", que vêm complementar os clássicos "tickets restaurante".
Em 1936, a inauguração das primeiras "férias pagas" favoreceu a industrialização do turismo com a criação dos primeiros albergues de juventude, pelo ministro Léo Lagrange. Ficou facilitado em muito um tipo de mobilidade social }de verão, uma espécie de retorno dos proletários à terra.
O trabalho vai exigir não mais um novo tipo de "habitação" mas um novo tipo de "alojamento". Pois o trabalho temporário leva à necessidade de um alojamento transitório, do qual o "hotel social" de Evry já prefigura o futuro desenvolvimento.
Como pode ser facilmente constatado, a questão principal deste final de século marcado pela revolução informática da automação da produção pós-industrial deixou de ser a questão da urgência de uma política de habitação social, capaz de favorecer o desenvolvimento harmonioso das populações européias, para tornar-se a incerteza sobre a localização geográfica exata de suas futuras "bacias habitacionais". No momento explodem, uma a uma, as antigas "bacias de empregos" da siderurgia, da indústria automobilística. Sem falar da mineração, dos pescadores de um continente em via de desertificação agrícola acelerada.
A revolução do modo de produção da qual somos hoje testemunhas (e frequentemente vítimas), com o desenvolvimento da informatização e o ganho de produtividade das máquinas automáticas é por um lado a hiperconcentração das populações em "arquipélagos de cidades" da metropolização européia e o nomadismo de cidade em cidade, na busca angustiante de um emprego mais ou menos durável, a sociedade "em dois tempos" se dissociando entre os "garantidos" (eletronicamente ligados para poderem trabalhar à distância) instalados em seus imóveis inteligentes, teletrabalhando no ritmo do tempo mundial dos mercados.
Por outro lado, dos desfavorecidos, os refugiados sociais obrigados a empreenderem incessantes deslocamentos de uma empresa a outra, de uma região ou país a outro no conjunto de nosso Velho Continente. A urbanização do tempo real da era do teletrabalho e da deslocalização pós-industrial renova os desgastes da urbanização do espaço real da era industrial e os amplia em escala mundial.
Assim, depois da oposição campo-cidade do século 19 e a oposição centro-periferia do século 20, assistiremos dentro em breve, se não nos prevenirmos, à oposição entre aqueles que contam com um domicílio e um emprego permanente e os que vivem à deriva, à procura de uma subsistência precária e de um alojamento provisório.
Esta regressão renovaria os confrontos entre sedentários e nômades, dos quais a história européia conserva as terríveis sequelas no destino reservado aos ciganos, 50 anos atrás.
Façamos votos fervorosos que os responsáveis pelas empresas pós-industriais não procurem aplicar às populações trabalhadoras os métodos de produção e de distribuição que já aplicam a seus produtos. Elas realizam uma distribuição por fluxos tensionados e estoque zero, eliminando seus depósitos de estoques para substituí-los por uma mobilidade perpétua de sua produção, em detrimento das reservas estáticas de outrora.
Se for esta a infeliz opção, após a destruição das docas e a reconversão dos depósitos industriais teremos que nos preocupar com a desconstrução dos subúrbios, estes bairros vivos que ainda favorecem a socialização. Em vez disso haverá um infinito vaguear, um percurso profissional cujo itinerário residencial não mais será assegurado.
Enfim, aqueles que ainda se recusam a enxergar essa ameaça de desestabilização social fariam melhor em observar os luminosos videntes da economia mundial. Por exemplo, segundo o relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) publicado em janeiro passado, 820 milhões de pessoas –ou seja, 30% da população ativa mundial– estão desempregadas ou em situação de subemprego.
Na França, segundo o último relatório do Centro de Estudos de Rendas e Custos (Cerc), publicado em fevereiro de 1994, mais de 5 milhões de empregados estão em situação de precariedade profissional. Quanto ao relatório de Christian Chasseriault, remetido ao ministro dos Assuntos Sociais em dezembro de 1993, ele já recenseia 1.400.000 franceses vítimas da "grande exclusão social" que se afundam na desumanização.

Tradução de Clara Allain

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