São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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A ARTE DO SELF

Como escrever autobiografias numa era de narcisismo

WILLIAM GASS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O autocentramento, ao que dizem, é a principal preocupação de nossa era. Estranha atividade. Imagino um mata-borrão impregnando-se da própria absorvência e desaparecendo lenta e gradualmente feito um gato Cheshire. Mesmo assim, se o astro é mais importante que a equipe e o clã mais próximo de nossas reais preocupações que a comunidade mais ampla, se é o caso de dar peso às minorias e a posse do divino às seitas, então talvez devêssemos assumir a suprema pluralidade sugerida por nosso egoísmo e cada um de nós desempenhar sua pessoa para um teatro vazio.
Mas se quisermos mesmo que o mundo assista? Olhe, mamãe, estou respirando. Olhem meus primeiros passinhos, olhem, estou usando o penico! Puxa vida, meu primeiro adultério –eu sou o máximo! É por isso que agora estou escrevendo esta gracinha que é a minha própria história. Só que tem um percalço. Que tipo de personagem posso esperar representar perante a consciência de uma outra pessoa ou perante o mais impiedoso dos palcos públicos –a página impressa?
A capacidade de ver-nos a nós mesmos como os outros nos vêem só é concedida a observadores descomprometidos. Mesmo o espelho só oferece a meu olhar o fragmento de mim que permito que ele receba. Não consigo ver tudo a meu redor. É como se eu estivesse dormindo para os meus lados que desaparecem nos cantos de meus olhos.
Acho que meu sorriso é triunfante, mas as pessoas a quem estendo a triunfalidade de meu sorriso vêem nos cantos levemente caídos de seus lábios uma expressão de desespero, desgosto, desdém –não sei que outras atitudes indesejáveis– e invariavelmente, quando em lágrimas, embora eu insista estar feliz feito William Jennings Bryan na defesa de Deus, do ponto de vista dos simples observadores o pranto me tornará culpado de uma mentira; porque efetivamente a única consciência em que acreditamos é a nossa, e temos que inferir o conteúdo da mente dos outros a partir das percepções que chegam às nossas, de uma voz entreouvida, de seus gritos e gemidos e da respiração ofegante; de um corpo, do jeito como uma pessoa anda, de seu ar emproado; e do rosto, de seus sinais.
E por acaso não atribuímos ao gemido nossa própria dor, ao corpo ardente nosso desejo, à piscadela dissimulada nossos próprios desígnios conspiratórios?
É muito mais seguro, dizem alguns, deixar o comportamento falar por si mesmo. A história é uma coisa que capturamos no ato, e apenas atos têm consequências públicas. Estados internos não chegam sequer a ser evidência, pois as dores podem ser imaginadas ou situadas erroneamente, seus gemidos simulados. Mais vale verificar onde está a fratura do osso, onde o dente está cariado
Sim; como insistiu Aristóteles, o Bem é aquilo que o Homem Bom faz. Por acaso o geólogo tem necessidade de inferir um interior para sua pedra para poder ler seu passado? Por acaso o zoólogo atribui sofrimento a suas rãs no momento de correr o bisturi por suas vísceras? Ora, poderíamos chorar um mundo de dores num dedal e ainda ter espaço suficiente para enfiar o dedo, pois a consciência jamais se pavoneia ou se lamenta no palco, do mesmo modo como não ocupa um armário no vestiário.
Uma biografia, a escritura de uma vida, é um ramo da história. Exige uma grande mão-de-obra e, em decorrência seria de esperar-se que o sujeito tivesse algum significado para a história como um todo. Mesmo assim, a maioria da humanidade repousa, como escreveu George Eliot, em sepulcros que ninguém visita, nada tendo deixado atrás de si de sua presença anterior.
A biografia, a escritura de uma vida, é um ramo da história, mas um ramo partido, quem sabe separado impiedosamente do tronco no momento em que Montesquieu voltava o olhar do historiador para temas mais amplos e no rumo dos aspectos sociais genéricos –de onde, pensava ele, haviam saído os traços individuais.
Mesmo assim, se meu dente dói, trata-se afinal de contas de uma dor minha, embora talvez você esteja melhor informado que eu quanto ao inchaço; se meu coração sofre, trata-se de um sofrimento único, embora o peso de meu sofrimento talvez não chegue sequer a fazer tremer a agulha da balança; se tenho medo, não me venha dizer complacente que partilha de meu medo e entende minha situação, pois como você pode saber o que estou sentindo? Considerando-se que, para consumar nossa morte, há mil maneiras similares e similarmente científicas, mas que no interior desse cerrar dos sentidos há um pavor que não pertence a mais ninguém, nem sequer a quem se encontre na mesma triste situação médica.
O saber tem dois pólos, sempre pólos isolados: o saber carnal, a imposição de mãos, a calibragem de golpes brutais, a contagem dos mantimentos; e o saber espiritual, invisivelmente sentido pelo eu interno, que não passa de um disputado campo de perturbação, um palco onde recitamos o monólogo monótono que é nossa vida.
Uma autobiografia é uma vida escrevendo a própria vida. Às vezes as biografias são escritas com a ajuda do biografado. e essas poucas, consequentemente, ficam ao mesmo tempo em aberto, centralmente incompletas, pois normalmente a morte faz a recapitulação, o sino tange pela história sob cuja narrativa o falecido será enterrado, com a fé de que ele ou ela venham a levantar-se novamente do meio dos mortos no dia da publicação, com todos os antigos atos nada mais que páginas, cada característica uma descrição bem-feita, cada qualidade de caráter uma historinha divertida, a mente espremida num dito espirituoso e a história do herói, ou da heroína, encaminhada não para o paraíso, mas para a estante.
Se pularmos rápido da crença de que ninguém além de mim pode saber como eu sou para o ponto de vista de que apenas um outro pode realmente ver-me, podemos num instante convencer-nos de que nem o autoconhecimento nem outro tipo qualquer de conhecimento é possível e, convencidos disso, deslizar aturdidos para o chão. Claro, poderíamos, observando como esses dois tipos de informação têm igual valor e são complementares, concluir que para um relato completo são necessários tanto o "dentro" como o "fora". Era essa a solução de Spinoza. Geralmente é aconselhável fazer o que Spinoza sugere.
Como tem início uma autobiografia? Com a memória. E com consequente divisão do eu em aquele-que-foi e aquele-que-é. Aquele-que-é tem a vantagem de já ter sido aquele-que-foi. Além disso aquele-que-foi, no presente, está à mercê do eu, pois talvez este não deseje recordar aquele passado, ou então pode desejar que aquele-que-foi fosse diferente que aquele que ele foi e consequentemente alterar sua descrição.
A todo momento um pedacinho do eu desliza e se afasta na direção de sua posição no passado, onde será parcialmente recordado, caso o seja; com distorções, caso o seja; depois apresentado ainda mais incompletamente, com omissões ainda mais graves e ajustes no entrecho ao sabor da caneta.
O autobiógrafo acha que conhece seu personagem. Ele tem uma tendência a tratar os autos com menos respeito do que deveria, e certamente não investigará a si próprio como se tivesse cometido um crime e devesse ser capturado e condenado; em vez disso, ficará satisfeito por ter pronunciado desde logo a própria defesa. Por certo não irá dar início a sua tarefa acreditando que levou uma vida remendada e que agora se trata de remendar o remendado. Uma autobiografia sincera é um milagre tão espantoso quanto um sexo duplo –e um capricho igualmente grande da natureza.
O autobiógrafo tende a ir por partes, a pular os trechos chatos e dar a volta nos pontos onde há concentração de embaraço. Os autobiógrafos dão a descarga antes de examinar as próprias fezes. Será que o empreendimento tem algum motivo que não esteja tingido pela presunção ou pelo desejo de vingança ou pela necessidade de justificar-se? De pôr uma auréola na cabeça de um pecador? Ter escrito uma autobiografia já é ter-se transformado num monstro. Alguns, como Rousseau e Santo Agostinho, tiram partido desse fato e tratam de ocultar o engodo atrás da confissão. Claro, como nos disse Freud, eles sempre confessam o que sua alma acredita ser o menor crime.
Muitas vidas são de tal modo destituídas de interesse que seu sujeito primeiro tem que realizar algum feito, como navegar sozinho ao redor do mundo ou escalar um pico arriscado para poder elevar-se acima da mera existência e depois, tendo criado uma vida, escrever sobre ela. Como se quiséssemos que Satanás evocasse, para nossa edificação, seu desafio a Deus, sua expulsão do Paraíso.
As vidas dedicadas ao crime são inúmeras, tal como as dos valentões do Velho Oeste. Outros se mantêm, como Boswells, à margem dos eventos, de modo a poder dizer mais adiante: "Estive em tal lugar e em tal lugar vi o rei Lear perder a razão; posso falar-lhes de um Rei que praguejava, gritava e chamava seu bobo enquanto seu bobo lentamente se assentava e tristemente suspirava...". Mesmo assim, por acidente, às vezes você se encontra num cenário importante, Saigon desmoronando em torno de sua pessoa como uma torre de blocos de madeira ou, ao sabor da sorte, tendo empreendido tarefas pouco recomendáveis que acabaram se mostrando mais para legais que para horríveis.
Temos, bem diante de nós, o exemplo aparentemente nobre de Bernal Díaz del Castillo, que era um soldado da infantaria do exército de Cortez. Aborrecido com a incompetência dos autores precedentes, que "nem no início, nem no meio, nem no fim" falavam a verdade, Díaz del Castillo escreveu sua própria "Verdadeira História da Conquista da Nova Espanha", e prefaciou sua obra sinceramente despretensiosa com uma declaração muito simples:
"Aquilo que eu próprio vi e as lutas por que passei, com a ajuda de Deus, irei descrever muito simplesmente, como uma testemunha ocular justa. Hoje sou um homem velho, tenho mais de 84 anos de
idade, perdi a visão e a audição, e nada obtive de valor para deixar para meus filhos e descendentes além desta minha história verdadeira –e eles vão ficar sabendo que história maravilhosa ela é."
Acreditamos nele porque o que ele escreve "soa verdadeiro", mas também porque, como Cephaulus na "República" de Platão, hoje ele está praticamente livre do mundo e suas ambições, do corpo e seus desejos.

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