São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Não obstante, muitas dessas memórias pouco diferem da tagarelice excitada do jornalista que tropeçou num acampamento de tugues assassinos ou esteve na praça onde se fizeram os mártires, e cujo relato, consequentemente, não pode ser chamado "auto", pois onde está o "eu", o doce "eu"?

Claro, há umas poucas mentes das quais todo passo é momentoso e umas poucas cujo caráter é tão complexo, completo e elevado que desejamos saber "como" e "por que". Achamos que são deuses, ou Wittgensteins. Só porque suas rimas tortas não tinham cheiro de coisa estragada.
Mas ele –nosso autobiógrafo– tem uma vida inteira de informações particulares. Tem conhecimento de atos, pequenos e grandes, que só ele testemunhou; é, claro que Lincoln tem lembrança da chuva no telhado no momento em que assinava a Proclamação; e por acaso você não se lembra dos tempos em que era um garoto em flor, mandando brasa no estábulo diante do tédio das ovelhas? Porém, qual a utilidade dessas sensações para um biógrafo de verdade, cujo interesse no modo como você vivia está ligado unicamente a suas possíveis implicações nas coisas que você fez?
Entre o ego e o objeto nosso coração balança. Quando o autobiógrafo diz "eu vi", tem a intenção de modificar o próprio ego por intermédio do relato de sua percepção –não apenas de ocupar o próprio olhar.
Houve um tempo em que a história se preocupava unicamente com o que considerava importante, juntamente com os agentes dessas ações, os idealizadores de ventos significativos e as forças que tais acontecimentos arrolavam ou expressavam. Os historiadores tinham dificuldades para decidir se a história era o resultado das ações notáveis de homens notáveis ou as consequências significativas de forças poderosas.
Entretanto, à medida que as máquinas começaram a reproduzir os objetos e a gente miúda começou a se multiplicar mais velozmente que as guerras e as fomes eram capazes de reduzir seus números, e a democracia chegou para bajular a multidão e dizer-lhe que o governo era dela, e o comércio floresceu e o dinheiro passou a ser o deus realmente ascendido, os números substituíram os indivíduos significativos, o trivial subiu ao trono e a história saiu atrás da fofoca, não das leis, preferindo mentiras sobre vidas secretas a intenções do Destino.
À medida que essas mudanças ocorriam, sobretudo no séc. 17, o romance chega para distrair sobretudo as senhoras da classe média, oferecendo-lhes um sentimento da própria importância: suas maneiras, suas preocupações, suas rondas diárias, suas aspirações, seus sonhos românticos. Moll Flanders e Clarissa Harlowe tomam o lugar de Medéia e Antígona. Em vez de aventuras concretas, a moda são as inventadas; em vez de viagens aventurosas, Crusoé nos transporta ao longo de seus dias; em vez de biografias de ministros e nobres, recebemos maços de cartas de faz-de-conta com histórias de seduções e traições. Desse modo, em pouco tempo os historiadores passaram a contar com os artifícios da exploração. A partir de agora suas páginas também passariam a abrigar casos divertidos, intrigas apimentadas. A história era humana, pessoal, cheia de detalhes concretos e tinha todo o suspense de um folhetim.
As técnicas da ficção contaminaram a história, o material da história foi oferecido à avidez do romancista. Hoje é difícil, às vezes, dizer o que é história e o que é ficção.
Em nenhum outro lugar se encontraria melhor mistura que numa autobiografia. O romance saiu da carta, do diário, do relato de uma viagem; sentia-se vivo assumindo a forma de todo registro de vida privada. Em pouco tempo a subjetividade era assunto para todas as bocas.
Não acredito que se deva partir do princípio de que a história, que sempre voltou sua atenção para guerras e revoluções, política e dinheiro, conflitos de todos os tipos (enquanto deixava de lado quase tudo o que importava na evolução da consciência humana, como a descoberta do silogismo ou da perspectiva de três pontos de fuga, que durante séculos seria o suporte do pintor), encontrara sua relevância definitiva com o fato de que sua narrativa se voltara para dentro, pois ela agora celebrava a percepção mais corriqueira, mais lugar-comum, e manipulava o irrelevante com mãos comerciais e uma língua pia, como quem vende seda.
Nosso estágio atual é divinamente dialético, pois hoje testemunhamos a volta do eu significante. Prince –não um príncipe reinante, evidentemente– e Madonna –não uma santa mãe, óbvio–, estrelas de estádio, ginásio, arena e tela, constelam nossa consciência, à medida que a história vira um livro cômico e a autobiografia, confissões de putas de celulóide.
Se pensamos em compor nossa autobiografia assim ou assado, a que recorrer senão a nossas agendas e diários? Mas o que são essas coisas que servem de fonte para tanta autobiografia? Há diferenças entre diários, agendas e cadernetas, exatamente como há diferenças entre crônicas e memórias e viagens e testemunhos, entre meia-vida e fatia-de-vida e vidas-a-tempo-integral, e essas diferenças deveriam ser observadas, não para obedecer a gêneros, mas para que a mente tenha condições de manter-se livre de confusão.
A agenda tem que ser anotada dia a dia e é inadequado deixar para terça-feira um encontro que cerrou nossos olhos tristonhos no sábado. Suas páginas são tão circunscritas quanto as horas e seus espaços devem ser recheados de fatos, observações, lembretes. O estilo da agenda é "staccato", telegráfico.
O diário ainda acompanha o andamento do calendário, mas seu alcance é mais amplo, mais circunspecto e meditativo. Os fatos diminuem em importância e são substituídos por emoções, devaneios, pensamentos. Se seu diário estiver cheio de informações, isso significa que você não tem vida interna. E o diário pede frases, embora essas frases não precisem ser forçosamente bem-acabadas. Você pode voltar atrás no que já escreveu em seu diário, mas, quando altera um trecho anterior ao dia em que está escrevendo, já está começando a inventar.
Ou seja, os Diários de Virginia Woolf estão com o nome errado. No caso dela podemos observar, como no caso de Gide, a tirania da agenda quando, tal como num diário, ela quer dar seu palpite no dia-a-dia e somos levados a imaginar que sua proprietária não espera outra coisa da vida senão algo sobre o qual valha a pena escrever, atravessando as horas iluminadas somente para encontrar umas poucas palavras para a noite, preocupada com a sensibilidade de seus sentidos, com saber se seus pensamentos valem a pena e com umas poucas belas expressões criadas em mais uma entrada na agenda.
Na caderneta de anotações rompemos com a cronologia. As notas não necessitam datas. Posso incluir o que quiser, mesmo pensamentos dos outros. A caderneta é um laboratório, um arquivo. Em uma das minhas você irá encontrar títulos para ensaios que espero escrever algum dia: }O Suflê enquanto Símbolo de Expectativas Frágeis. O nome "Os Cadernos de Malte Laurids Brigge está errado, pois neles a linguagem está excessivamente bem-acabada, os episódiosestão ordenados engenhosamente demais; na realidade está faltando muita desorganização; entretanto, se os"Cadernos" fictícios de Rilke lembram diários, os "Notebooks" de Henry James são o produto genuíno: lugar para tramar romances, ponderar problemas, estratégias e ataques.
Os três –agenda, diário, caderneta– são praticados na intimidade. Não são para serem lidos por mais ninguém, pois ali você está emocionalmente nu e formalmente decomposto. Mas caso eu já esteja com um olho na história; caso eu saiba que quando me for meus rabiscos serão examinados, ponderados, comentados, posso plantar itens redentores, rearrumar páginas, dar uma torcida na história.
Nenhum desses três –diário, agenda, caderneta– é uma autobiografia, embora os três tenham caráter autobiográfico. Um livro de memórias costuma ser a evocação de outro lugar ou personalidade, seu foco está voltado para fora: no súbito aparecimento de Ludwig Wittgenstein em Ithaca, Nova York, por exemplo, ou em como César disse "Até tu" antes de tombar, ou em como era ir para a cama com Gabriele d'Annunzio.
Lewis Thomas toma os 70 anos de vida com os quais imagina que a autobiografia tenha a ver e começa por remover os 25 anos em que estava dormindo e subtrai das horas de vigília todas as horas vazias e ociosas para atingir um remanescente de quatro mil dias. Descontadas as lembranças imprecisas, as reconstituições em interesse próprio e outros embustes, seu cômputo se reduz. Os momentos indeléveis restantes têm grande probabilidade de ocupar 30 minutos. Esses fragmentos, diz ele, são o assunto que convém às memórias.
O que fica de fora? Que leio jornais. O que fica de fora? Que comi batatas. O que fica de fora? Minha segunda tentativa de circuncidar-me. O que fica de fora? O que me degrada; o que não me diferencia de todas as outras pessoas: movimentos intestinais, filmes prediletos, garrafas de uísque. O que é aproveitado? O que me torna único; não, o que me torna universal, o que beneficia minha reputação.
E se fizermos uma coletânea de lembranças desse tipo, lembranças como pontas soltas, porque uma autobiografia tem de apoiar-se naquilo que não pode ser e não é lembrado, juntamente com aquilo que é lembrado: nasci; tive coqueluche antes dos três anos; meus pais vieram de Syracuse para Sunnydale num Ford sedã.
A peça de Howard Hoagland "Learning to Eat Soup" apreende perfeitamente essa característica, composta como é de parágrafos formados de memórias, balões em que se soprou o passado:
"Minha primeira lembrança francamente sexual é uma lembrança em que estou de joelhos do lado de fora da sala de aula da 5ª série limpando o assoalho e Lucy Smith, de blusa branca e saia preta, está parada a meu lado olhando. Minha primeira lembrança é estar num trem que descarrilou numa tempestade em Dakota certa noite quanto eu tinha dois anos –e ouvir alguém dizer, enquanto avançávamos numa carroça na direção das luzes esmaecidas de uma pequena estação, que um garoto de minha idade havia morrido sufocado por ter respirado lama.
Mas talvez minha primeira lembrança de verdade seja a que tive quando meu pai estava morrendo. Eu tinha 35 anos e sonhava com uma nitidez absolutamente incrível que estava sendo embalado e acarinhado por ele, rindo desamparado e feliz, e no sonho eu não tinha mais que poucos meses de idade".
Boa parte do que recordamos é lembrado de quadros e peças e livros, e às vezes essas coisas já são lembranças, e outras vezes são lembranças de livros ou peças ou quadros... cujo assunto é o eu.
Os testemunhos também têm poderosas intenções impessoais. Eles não querem só dizer: estive ali, agora permitam que eu lhes ofereça meu angustiado relato dessas coisas, não, não, pois eles, essas testemunhas, estavam lá no lugar de todos nós, eram nós, em pé naquela fila lenta de gente nua com o filhinho morto nos braços apertado contra o peito para esconder os seios, jamais levantando o olhar para as outras pessoas da fila, murmurando uma oração com ar ausente –é, essa é a desgraça da humanidade, que nenhuma alma individual deveria transportar, nem mesmo Jesus, embora digam que ele tentou.
É saudável, desejável até, misturar os gêneros para fugir às limitações de convenções desgastadas, ou quebrar formas para poder criar novas formas; mas introduzir intencionalmente a ficção na história só pode ter o sentido de neutralizar seu objetivo, a verdade, seja porque se queira mentir ou agora se acredite que mentir não faz diferença e que o descuido é uma nova virtude, seja porque se desdenhe a meticulosidade como um esforço inútil, uma preocupação fútil, visto que todas as coisas são corruptas, seja porque uma vida realçada vende melhor que uma retilínea, de modo que vamos acrescentar um pouco de decoração.
Não conheço nada mais difícil que saber quem você é e depois ter a coragem de dividir com o mundo as razões para a catástrofe de seu personagem. Todo aquele que está sinceramente feliz consigo mesmo é um tolo. Mas uma autobiografia não se transforma em ficção só porque as invencionices inevitavelmente a introduzem ou porque os motivos jamais são puros ou porque a memória genuinamente se esmaece. A ficção é sincera e não quer trapacear. Haverá quem tente glamurizar produtos de má qualidade fingindo que são verdadeiros e depois, ao ver que não conseguem passar pelo crivo mais perfunctório –como os filmes "JFK e Malcolm X"– se esquive da responsabilidade com uma conversa sobre "arte".
Não deveríamos confundir o adjetivo com o substantivo. Uma ficção não se transforma em autobiografia simplesmente porque alguns de seus elementos são autobiográficos; uma autobiografia não é uma forma de ficção só porque um ou outro trecho está equivocado ou induz a erro ou é metafórico.
Talvez o mais grave dentre os maus usos do adjetivo diga respeito ao texto inconscientemente epifânico. Toda palavra, todo gesto, todo ato podem revelar um parcela da natureza íntima de seu agente, e se buscamos a dissimulação, obtê-la pode parecer mais fácil nos clichês, por trás de semelhanças, mediante a imobilidade ou qualquer das reações tão completamente exigidas pelas circunstâncias a ponto de vedar a individualidade: fugir do touro, responder "oi" a um "oi" e "tudo bem" a "tudo bom?", morrer ao levar um tiro no coração. Mas se Kafka põe um ponto final num papel, em pouco tempo estamos tentando levantá-lo para examinar o outro lado. "É, ele fugiu femininamente do touro." "O 'oi' dele foi tão sem-graça quanto a soda de ontem."
Freud preferia examinar os vínculos do comportamento menos intencional –nossos lapsos, enganos, erros bobos– partindo do princípio de que esses estavam disponíveis para serem determinados pelo eu interior.
A autobiografia, porém, trata de uma coisa diferente: é uma revelação intencional que pode, ademais, e devido a sua abertura, dissimular; não se trata, contudo, de um modo fundamental de dissimulação que em seguida habitualmente se equivoque. E quanto melhor o artista, menos provável a ocorrência frequente de epifanias, porque os reclamos da forma são muito mais exigentes que a maioria das causas históricas determinantes, criando seus próprios contornos, seus próprios narizes, suas próprias relações internas.
Quanto lembramos uma vida temos que lembrar de lembrar a vida vivida, não a vida lembrada. Primeiro é a criança aturdida, a criança feliz, brincando em ruas devastadas pela guerra, roubando anéis de dedos sem vida, urinando pelos porões abaixo, gabando-se dos horrores que havia visto; depois há o velho em que essa criança irá transformar-se, horrorizado pelos horrores nos quais a criança tomou parte, ou, inversamente, zombando das lágrimas derramadas por causa de um balão roto –sem importância para o judicioso velho que escreve as palavras "balão roto", que, quando aquelas lágrimas correram, significavam um desconforto e a primeira percepção da criança acerca da fragilidade do mundo e seus prazeres.
A autobiógrafa não deve apoiar na criança suas lembranças do exílio, do fascismo de seu pai, dos inúmeros homens pouco confiáveis de quem foi obrigada a se afastar; mesmo assim não pode olhar para trás como se fosse cega para a pessoa que hoje é, como se fosse incapaz de pensar ou escrever como faz hoje só porque neste momento evoca a morte de seu pai e como este passou horas em sua cadeira predileta diante da lareira, esfriando ao calor de suas chamas familiares e amigas.
Quer dizer que em primeiro lugar devemos empreender a tarefa de descrever a natureza desse historiador que agora bica a casca de sua história? E para fazê-lo não ateríamos que dividir-nos novamente, imagina Monsieur Teste, de Paul Valéry, transformando-nos num observador de nosso eu atual, o assim chamado autobiógrafo, o eu cuja vida não durou mais que... seis horas? pois foi então que nossa mulher abandonou para sempre o lar familiar... ou oito semanas depois foi então que se verificou que nossas finanças foram adquiridas fraudulentamente... ou 20 anos? Faz tudo isso que nos transformamos? Se é que algum dia nos transformamos; caso não tenhamos sido Sir Walter Scott, o autor de "Waverley", a partir do dia em que nascemos, quando a enfermeira se aproximou de nosso papai e disse: o senhor ganhou um menino, o autor de "Waverley", com mais de três quilos bem pesados.
Não se trata de uma sugestão totalmente tola. Quando, em filosofias passadas, argumentava-se a favor da existência de uma alma, sempre se destacava o fato de que nosso nome de batismo nos nomeava como um sujeito, não como um predicado; que o sujeito era aquela substância imutável sobre a qual incidiam a mudanças da vida. A autobiografia era busca de um eu central e a definição desse eu central, enquanto o autobiográfico (o adjetivo) assumia a causa dos predicados e preocupava-se com os acidentes de tempo e lugar, as vicissitudes dos instintos.
Lendo, não encontramos tantas vezes um trecho que captava um momento de nossas próprias vidas? Numa linguagem tão capaz, tão além de nossas expectativas? Então não seria o caso de colecionar esses trechos, ordená-los, caso pareça adequado cronologicamente, como sugere Walter Abish em seu brilhantemente construído livro "99: The New Meaning?" Dessa forma demonstraríamos não apenas as diferenças entre vidas, mas sua uniformidade, sua comunidade, sua reconfortante banalidade. Três ou quatro ou cinco compilações dessas seriam suficientes para atender a todas as histórias pessoais.
E caso fosse o eu substantivo central a observar-nos enquanto nosso eu externo fizesse a barba (não o espelho); e caso fosse esse mesmo olho engenhoso a ver através das evasões de nossa vida diária; e caso ele fosse sempiterno, sempre o mesmo, através de defloração, divórcio, novo casamento; nesse caso ha uma boa chance de que ele seja também o autor de toda autobiografia veraz. Outro que envelhece, impiedoso como deve ser, remoto, imune ao louvor; e, caso seja assim, não seria o caso de que somos conjuntamente humanos em vez de meramente animais da mesma espécie porque aquele guardião insone, como um olho no céu, como outrora se apregoava que era Deus, é, em cada um de nós, mais ou menos. Um imutável e inalterado, mesmo em Mozart ou Montovani, no piedoso Spinoza ou na besta de Belsen?
Tradução de Heloísa Jahn

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