São Paulo, domingo, 21 de agosto de 1994
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Uma transição articulada

GERARD LEBRUN

GÉRARD LEBRUN
Quem assistiu à campanha de 1989 poderia ser assaltado por pensamentos melancólicos. Recordar-se-ia do surto que levou ao poder o primeiro presidente eleito pelo sufrágio universal desde 1960 e da decepção que se seguiu.
Um passo a mais e seria possível perguntar se a eleição presidencial –particularmente na atual situação social do Brasil– não seria um típico embuste destinado a dar a cada eleitor, de quatro em quatro anos, a ilusão de possuir uma parcela da soberania.
Cabe então, para ser coerente, invejar a sorte dos povos (Cuba, Coréia do Norte) que permanecem cuidadosamente preservadas dessa mistificação?
O absurdo dessa questão nos indica que o desencanto, nessas circunstâncias, seria mau conselheiro e, além disso, nos cegaria para as recentes lições da história.
O último decênio do século nos ensina, ao menos, duas coisas: 1) a fragilidade intrínseca das ditaduras estatizantes e o desastre (moral, econômico, ecológico) que deixam em sua esteira; 2) que o Estado de Direito, correspondente às democracias que outrora chamávamos de "formais" é ainda, em qualquer parte, o recurso homeostático menos custoso capaz de resolver pacificamente os conflitos e de punir a corrupção de uma determinada equipe dirigente.
O primeiro ponto é óbvio demais para merecer desenvolvimento. Para sustentar o segundo não faltam exemplos, desde o impeachment de 1992 no Brasil ao sismo político italiano, passando pela catástrofe eleitoral que o Partido Socialista experimentou na França.
Apesar de seus vícios de funcionamento, a democracia "formal" é capaz de dar, no momento oportuno, seu peso máximo à opinião pública e assim corrigir, sem atrasos excessivos, os erros de pilotagem que ela mesma possibilitou. Além do mais, quem é, entre os numerosos candidatos de hoje, que não o admite ao menos em palavras?
Há um outro ponto digno de interesse: a rapidez da evolução política do Brasil –à revelia por certo dos eleitores mais jovens. Não está tão longe a época em que a ditadura deixava ao eleitorado apenas a responsabilidade de escolher os vereadores (de minha parte guardo uma viva lembrança dessas lúgubres jornadas eleitorais). E não faz mais de dez anos que se elevava o clamor das Diretas-Já...
Quem mesmo entre os otimistas pensaria naquelas horas que o eleitorado brasileiro de 1994 teria de fato a oportunidade de escolher entre um socialista e um social-democrata? Só podemos nos congratular por essa rapidez. Mas também podemos temer que ela dissimule as dificuldades a serem contornadas para chegar onde estamos e, por conseguinte, favorize as sereias do radicalismo.
Na tipologia dos regimes pós-ditatoriais, o Brasil está mais próximo do modelo espanhol do que do russo. Não acontece o mesmo com os regimes autoritários que se abrem em contraposição aos regimes totalitários que desmoronam. Os primeiros não desabam numa noite, eles se dissolvem. E o homem de Estado que conhece seu caminho deve levar em conta esse fenômeno de diluição (ou de emulsão).
Parece-me, pois, que estaríamos cometendo um erro se víssemos esse estrategista como candidato que renega seu passado. Ora, não observar a aceleração da história, como aconteceu no Brasil nos últimos 16 anos, poderia levar a interpretar erradamente como oportunismo o que se pode considerar como uma lição magistral de arte política.
Esse é um equívoco que poderia pesar sobre este escrutínio. Mas, em contrapartida, um observador francês, desembarcando de ultramar, possui amplos motivos para se regozijar com a evolução do espírito público no Brasil.
Um exemplo: critica-se sem mais o horário eleitoral, sendo verdade que uma legislação inutilmente autoritária prejudica aqueles que nele se exprimem. No entanto, se se levar em conta o caráter febril de todo período eleitoral, não há dúvida de que o discurso dos dois candidatos liderando as pesquisas eleitorais mostra muito bem quanto cada um deles respeita a opinião pública que pretendem convencer.
Já estão longe os tempos do folclore populista e as bravatas ideológicas que faziam sucesso nos comícios de antes de 64 e que estão em via de morrer uma bela morte. Não deixa de ser satisfatório assistir, desse modo, ao desaparecimento de toda imagem terceiro-mundista do Brasil que o discurso político, em seus excessos de outrora, podia ter forjado. A essa visível modificação do espírito público evitaria chamar de milagre brasileiro, pois ela não maravilhará de maneira alguma aqueles que tentam não conceber o Brasil por meio de imagens convencionais.
Nessas condições, tenho a esperança que nesta eleição, tão decisiva para o destino da América Latina como o do próprio Brasil, o eleitorado saberá ouvir aquele que lhe fala de modo mais claro e transparente e que, à sua imagem, saberá tomar a contrapartida dos emigrados de Coblentz (aqueles "que nada aprenderam e nada esqueceram"), mostrando que aprendeu muito com os anos dolorosos e que, por isso, sabe também "esquecer" –mas entre aspas e com discernimento.

GÉRARD LEBRUN, 64, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e da Universidade de Aix-en-Provence (França). É autor, entre outros livros, de "Kant e o Fim da Metafísica" e "O que é Poder".

Tradução de Hélio Schwartsman.

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