São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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'Me preparei para levar tiros'

RICARDO FELTRIN
DA REPORTAGEM LOCAL

"No final de 91, viajei para Corumbá (MT) para tentar pegar Ramon, grande traficante boliviano que preparava a entrega de 50 quilos de cocaína em São Paulo.
A droga sairia da Bolívia, passaria por Corumbá e daí viria para São Paulo.
Fiquei no hotel Santa Mônica. No registro do hotel, minha profissão: empresário.
Fiz chegar ao conhecimento de Ramon que um grande empresário estava querendo falar com ele para comprar cinco quilos de pó.
Não foi difícil. Nossa vantagem é que que traficantes têm muito produto para poucos compradores. Quando surge um novo mercado, eles dão a vida para tê-lo.
Ramon mandou um empregado ao hotel marcar almoço para o dia seguinte.
Em vez de ficar feliz em ter atingido o primeiro objetivo, fiquei tenso. Não dormi direito aquela noite. Tive pesadelos.
No restaurante, foi pior ainda. Enquanto eu o esperava, minhas mãos suavam, as pernas tremiam.
Ramon chegou. Sentou e se apresentou. Minha sorte foi que ele gostou de mim. Foi o primeiro a falar sobre o assunto: 'Soube que trabalhamos com a mesma mercadoria', ele disse. Eu confirmei.
Ramon me convidou para ir a sua casa no dia seguinte, em Porto Soares, uma cidade boliviana muito pobre –a cerca de 20 km de Corumbá. Mas a casa do homem era fantástica. Serviu uísque.
Ramon disse que preparava um carregamento de 50 kg para São Paulo e deu seu preço: US$ 2.400 por quilo.
Aprovei. Marcamos novo encontro no dia seguinte, na Bolívia. Na verdade, a trabalho eu não poderia ir lá. Mas fui assim mesmo.
Ele me levou a um galpão perto de sua casa. Um empregado me mostrou a cocaína. Mas eu não podia prendê-lo. Ele não estava no Brasil. Seria ilegal.
Voltei para a casa de Ramon. Combinamos que o pagamento só seria feito em São Paulo.
Veio o imprevisto. Ramon quis que conhecesse o motorista que levaria a droga, Luís.
Assim que Luís entrou na sala, senti que me reconheceu. Não sei como... a sensação... a forma como me olhou. Fiquei gelado... Eu suava. Mas consegui me controlar. E Luís não falou nada ali.
Ramon me abraçou e se despediu. Eu teria que ir embora com Luís, que também morava em Corumbá. Um táxi nos esperava na porta da casa de Ramon.
Assim que entramos no táxi, Luís perguntou de bate-pronto: 'O patrão sabe quem você é?'
Dessa vez, o meu susto foi maior. Até então eu agia e parecia um grande empresário. Será que ele me reconhecera? Será que eu já havia prendido ele alguma vez?
Luís reforçou o tom de voz: 'Quero saber se o patrão sabe que você é policial!'
Foram os piores momentos da minha vida. Eu havia sido desmascarado em plena Bolívia.
Tentei disfarçar. 'Não contei não', disse a ele. 'Não achei ser o caso. Você acha que precisa?'
Luís se enfureceu: 'Se eu acho que precisa contar?!'
Não havia mais saída. O taxista já manobrava o carro para voltar à casa de Ramon.
Eu sentia que ia morrer. Mas essa certeza, inexplicavelmente, me trouxe tranquilidade. Eu tinha que fazer algo, e fiz. Continuei meu papel, como um ator.
Disse a Luís que era policial, mas também era traficante. E daí? Falaria com Ramon, sim.
Ramon achou estranho voltarmos. Na sala dele, me preparei para levar tiros nas costas. Pensei na minha mulher, filhos, nos amigos... E falei...
Quando o traficante ouviu a revelação se apavorou.
Mantive a calma. Por meia-hora falei que não havia problemas em ser policial, que meu esquema era perfeito. Ganhei o cara.
No final, Ramon ficou tranquilo e mais feliz. Achou que tinha achado o esquema seguro dentro da polícia. Marcou a entrega para sete dias depois em São Paulo, na entrada da marginal Tietê.
A carga seria transportada por Luís e pelo gerente de Ramon, Manoel.
Eu sabia que não daria para pegar Ramon, mas ia desarticular uma parte da rede em São Paulo. Eles colocavam pelo menos 50 quilos por mês na cidade.
Voltei para Corumbá com Luís. Fiquei sabendo como ele me reconhecera. Ele trabalhou numa transportadora na zona cerealista de São Paulo e já tinha me visto várias vezes dentro do carro da polícia. Foi muito azar e muita sorte...
Na apreensão da carga, uma semana depois, tive mais sorte ainda. Quando passavam por Campinas, Luís encontrou um amigo em um posto. Manoel, que estava junto, não desceu do caminhão. Mas viu a cena e estranhou que o motorista falasse com alguém estranho.
Quando ambos foram presos, na entrada da marginal Tietê, Manoel fez chegar ao conhecimento de Ramon, através de advogados, que Luís era o traidor e culpado, que havia delatado tudo a um sujeito em um posto de gasolina.
Dois dias depois de presos, Ramon telefonou da Bolívia para minha casa (eu havia dado o número). Não desconfiou de nada. Pediu mil desculpas por uma falha técnica na entrega e disse que providenciaria nova carga para a semana seguinte.
Fiz o papel de bravo e insatisfeito. Disse que desse jeito não dava para negociar e desliguei. Ainda penso que vou pegá-lo."

Relato do investigador Hurdt

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