São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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'No dia D fiquei apavorado'

RICARDO FELTRIN
DA REPORTAGEM LOCAL

Erramos: 29/09/94

Corumbá é uma cidade do Mato Grosso do Sul, e não Mato Grosso, como foi informado neste texto. 'No dia D fiquei apavorado'
"Após seis meses investigando, no início de 92 fiquei sabendo que Alba (nome verdadeiro), conhecida intermediária de traficantes bolivianos, estava em São Paulo.
Através de um informante, mandei um recado a ela: eu era um sujeito muito rico que trabalhava no 'ramo'. Queria encontrá-la.
Dois dias depois, marcamos um jantar num restaurante fino em São Paulo. Cheguei com o informante num Escort XR-3 vinho, conversível. Eu estava vestido impecavelmente.
Durante o jantar, notei que Alba estava visivelmente flertando comigo. Era recém-divorciada, devia estar carente. Isso deixava as coisas mais fáceis e aproveitei essa deixa também.
Jantamos juntos mais duas vezes durante a semana e marcamos viagem para o Mato Grosso, Corumbá (MT). Ela cada vez mais tentava se aproximar. Nos hospedamos no hotel La Siesta. Usei meu nome mesmo.
Ficou uma situação difícil. Discutimos asperamente no hotel porque ela queria ficar no mesmo quarto que eu. Não deixei.
Para Alba, eu era um rico exportador de cocaína para a Europa. Em dois dias ela já havia feito contato com dois traficantes. Eles nos encontrariam no hotel.
Quando chegou o dia D, fiquei apavorado. É sempre assim... Eles nos encontraram à beira da piscina no hotel. Pediram bebidas. Eu não gosto de beber. Tomei um uísque e já me sentia zonzo.
Enquanto isso, os traficantes (Carlos e Antonio) contavam piadas de policiais, que eles chamam de cachorros.
Eram piadas ridículas, mas eu tinha de rir. Ria por fora, mas, por dentro, queria matá-los.
Depois começaram as suas lamúrias: que perdem muita mercadoria, que não dá para confiar nos empregados, que os compradores pechincham muito... Cobravam US$ 3.500 o quilo.
Fizeram uma proposta: para cada um quilo que eu conseguisse colocar na Europa eles me dariam dez quilos em São Paulo. Aceitei.
Antes de se despedirem, insistiram que eu tinha de ir a um churrasco na Bolívia, no dia seguinte. Seria um encontro de amigos.
Recusei, com certo medo até. Não sabia como eles iriam reagir. Eu disse que tinha de voltar a São Paulo no dia seguinte.
Ficamos de combinar a entrega por telefone. Três dias depois, me encontrei com Alba em São Paulo, num shopping.
Ela iria telefonar para o responsável pela entrega, João, gerente de uma transportadora da região de Campinas.
Quando ela discava, marquei o número. Aí ficou fácil. Nós grampeamos esse telefone.
Quando a primeira carga chegou, sabíamos sua rota. Pegamos tudo (18 kg), perto do pico do Jaraguá (Grande São Paulo). Prendemos o motorista.
Como a minha carga não chegara na data marcada, telefonei cobrando os traficantes. Me disseram que estavam chateados, mas a carga havia rodado (sido apreendida).
Iriam mandar outra, mas só no mês seguinte. Pegamos de novo: 14 quilos num mês, e mais 16 quilos na semana seguinte.
Os traficantes otários não desconfiavam de nada, que nós tínhamos a escuta na sede da transportadora deles.
Depois disso, perdi o contato com eles. Alba sumiu (no início deste ano fiquei sabendo que havia sido presa na Espanha).
Ficamos quase um ano sem nos comunicar. Fiz o papel do empresário desiludido.
No final do ano passado, retomei o contato com eles. Ficaram de mandar um casal para falar comigo em São Paulo. Eles vieram: Marcos e Joana. Eles tinham um filho de um ano.
Passei a me encontrar com eles pelo menos duas vezes por semana. Eles me visitavam no flat em que eu me hospedava.
O filho deles, de um ano, acabou se apegando tanto a mim que os dois decidiram me convidar para ser o padrinho do garoto.
Essa hora dói muito mesmo... A criança não tem culpa do que os pais são... Eu não podia aceitar, mas também gostei do garotinho. Tenho uma filhinha... Mas acabei dando uma desculpa para recusar.
Marcamos nova entrega, mas dessa vez eu queria tratar com o próprio gerente da transportadora.
Fui para o interior de São Paulo e o conheci: Jorge.
Ele tinha uma carga para enviar e entregaria minha encomenda no mesmo dia. Marcamos o estacionamento de um shopping de São Paulo para a entrega.
No dia marcado, nos encontramos. Jorge estava com pressa porque tinha que voltar para casa. Seu filho fazia um ano naquele dia.
Apareci no local com um amigo (outro policial) e pedi licença para ir ao banheiro do shopping.
Enquanto isso, Jorge mostrou ao meu amigo onde estava a droga. Imediatamente foi preso. Ele chorou muito e hoje está na Casa de Detenção.
Até hoje não sabe que eu era um policial, mas sei, através de informantes dentro do Carandiru, que ele jurou que vai descobrir quem eu sou e que vai me matar quando cumprir a pena (em 1999).
Às vezes eu sinto medo só de andar na rua. Sei que se ele me cruzar na rua vai me reconhecer e vai querer me matar. Ele nunca vai esquecer que foi preso no dia do aniversário do filho."

Relato do investigador Wladimir

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