São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Consenso da qualidade

ANTONIO KANDIR

O debate político é pródigo na produção de mitos. Nos anos 80, por força da maré conservadora na Europa e Estados Unidos, o mito em voga era o "neoliberalismo". Hoje esse mito cede terreno, à medida que experiências concretas apontam o acerto de uma visão mais equilibrada do papel do Estado no tocante às transformações da economia capitalista.
Qual não é, pois, a surpresa, quando nos damos conta de que há quem queira fazer crer que, nas eleições deste ano, estamos frente às alternativas excludentes de votar a favor das políticas "neoliberais" do "Consenso de Washington" e contra o fim do "apartheid social", ou vice-versa. Mais um mito, produzido e ventilado por quem se perdeu na bruma espessa do debate ideológico.
Abertura comercial, desregulamentação e privatização são políticas que admitem grandes variações. Mas todas visam ampliar estímulos, diminuir barreiras à geração de riqueza. De forma mediata ou imediata, buscam elevar as taxas de investimento na economia, frente a crises do Estado.
Ocorre que, hoje, o país que quiser praticar políticas consistentes de estímulo ao investimento não pode desconsiderar a questão social. Não só por razões "humanitárias" ou para minimizar riscos políticos, mas por razões diretamente ligadas à lógica do investimento e da produção capitalistas.
Trata-se de uma oportunidade aberta por transformações nas formas de produção capitalista. Hoje, as condições materiais em vivem os trabalhadores, o nível de instrução formal que apresentam, a qualidade dos serviços de saúde a que têm acesso têm peso crescente nas decisões de investimento.
A razão é simples: é preciso produzir com qualidade cada vez maior. Quando se tratava de produzir em massa, importavam bem menos, na determinação do investimento, as condições materiais de vida do trabalhador. Importava a oferta barata de mão-de-obra.
Com a difusão de tecnologias de base microeletrônica e modificações correlatas nos desejos e exigências dos consumidores, a qualidade de vida do trabalhador passou a afetar a competitividade, já que a qualidade da produção não pode deixar de ser proporcional à capacidade cognitiva, à saúde física e mental, aos hábitos de higiene e limpeza da mão-de-obra.
Muitas empresas no Brasil já têm investido na melhoria dos níveis educacionais e de saúde dos empregados. Trata-se de iniciativa importante, mas insuficiente.
Insuficiente, em primeiro lugar, porque restrita às maiores empresas, que têm como arcar com os custos da oferta desses serviços.
Em segundo lugar, porque temos o imenso problema do desemprego, e este, por força das mesmas transformações que abrem oportunidades inéditas de casar a "lógica do capital" e o "bem-estar", tende a ser crescente. Num país como o Brasil, o fenômeno novo do desemprego estrutural tende a sobrepor-se ao problema secular de bolsões de miséria.
Reside aí o verdadeiro paradoxo. A sociedade brasileira terá de enfrentá-lo. Imaginar que se possa resolvê-lo criando obstáculos à modernização produtiva é um equívoco de grandes proporções. Sem modernização produtiva, o "apartheid social" não será superado nunca. Ao contrário: vai agravar-se.
A solução prática do paradoxo passa pela reconstrução do Estado. A modernização produtiva requer um Estado competente, não só para ofertar saúde e educação de qualidade, mas também para coordenar a integração competitiva do país na economia internacional.
Exige, por outro lado, um Estado igualmente competente para fazer face aos efeitos perversos da modernização, através do fortalecimento das políticas de seguridade e de políticas de geração de renda, tipicamente políticas de apoio a micros e pequenas empresas.
Atingir esses objetivos é o grande desafio nacional às vésperas do século 21. O resto são rótulos com que se divertem os que estão na "torre de marfim".

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