São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994 |
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Um sábado de carnaval
DA REDAÇÃO A figura de Ferreira Gullar cerca-se de polêmica ao tratar de um episódio crucial da literatura brasileira deste século: o concretismo. A seguir, ele conta como travou contato com Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari -e como rompeu com os três, inaugurando o movimento neoconcreto.Folha - Onde estaria, em sua opinião, o ponto de partida do concretismo? Gullar - Vou dizer rapidamente como é que isso começou. Quando cheguei ao Rio em 1951, estava começando a se falar numa arte geométrica, a partir de idéias que vinham da Argentina. Mas, no começo, eu me lembro, Geraldo de Barros vem da Europa e traz umas reproduções de Klee, Mondrian, que eu nunca tinha visto e vi na casa do Mário Pedrosa. Sabia-se do cubismo, de Picasso, de Braque, de Léger, mas, agora, começava-se a descobrir uma linguagem estética, uma outra pintura moderna, que a guerra tinha abafado. Era uma linguagem mais sutil e mais essencial, essa coisa da linha pela linha, o traço, a matéria. Era uma descoberta para todo o mundo. Folha - Que formas essas descobertas começaram a ganhar no Brasil? Gullar - Bem, quando a coisa vai para São Paulo, a pessoa que teoriza lá é o Waldemar Cordeiro, que era um homem muito inteligente, mas tinha tendência a uma certa simplificação teórica, a tornar a arte uma coisa demasiadamente cerebral. Quando se faz, em 1956, a primeira exposição conjunta dos artistas concretos, a diferença básica era que o pessoal do Rio era colorido, valorizava as cores, e o pessoal de São Paulo não tinha cor. A tese do Cordeiro era que a cor perturbava a estrutura do quadro. Então, eram cores neutras, era preto com azul escuro, com cinza, era uma coisa em que a cor, quer dizer, o que é sensual, o que é emoção, o que é difícil de controlar, era eliminado. No Rio, a influência era do Mário Pedrosa, porque ele era um poeta na verdade e, ao defender a arte concreta, ao mesmo tempo valorizava a arte dos primitivos, dos loucos e das crianças, e não descartava a arte de Portinari, Segall e Di Cavalcanti. Isso dava mais liberdade para o grupo do Rio. Folha - E a poesia no meio disso tudo? Gullar -Bom, no meio disso, estou escrevendo "A Luta Corporal", que não tem nada a ver com concretismo, com arte concreta. É, ao contrário, uma poesia muito –eu diria o quê?– passional, uma mistura de lucidez e de delírio. Não é uma poesia cerebral no sentido de encontrar formas controladas, tranquilas e racionais. Eu publico "A Luta Corporal" em 1954, e os últimos poemas são uma desintegração da linguagem. Mas aquilo ali não é uma coisa gratuita, eu não estava querendo fazer vanguardismo. Se trata de minha vida, do sentido que tinha a literatura. Eu queria descobrir alguma coisa na linguagem que fosse a essência dela, algo permanente, que não fosse ilusão. E "A Luta Corporal" é todo um livro que vai construindo formas e arrebentando, na busca dessa coisa essencial que eu achava que existia. Até chegar num ponto em que eu me disse que estava propondo um problema aparentemente sem solução e que talvez eu estivesse me iludindo, porque ficava a anunciar uma coisa que nunca ia acontecer. O que eu propunha era irrealizável: criar uma linguagem que nascesse com o próprio poema, que não tivesse passado e que fosse portanto a essência do que eu estava experimentando ali naquela hora. A linguagem é passado, é histórica, ela não pode nascer. O poema é o local onde a linguagem se transfigura, mas não é o local onde a linguagem nasce. Nessa época, ao mesmo tempo, eu senti uma repugnância da linguagem. Escrever, à maneira como fazia em meus poemas anteriores, me causava náusea. Tanto que, na época, eu precisava responder a uma carta do Sarney e a escrevi em francês. Eu estava ficando maluco. Então, em vez de eu dizer: "Bom, eu agora estou maluco e vou ficar fazendo loucura", eu parei e falei: "Acabou". Não acabou a poesia, acabou a minha experiência, não tenho mais por onde seguir. Folha - E foi essa desintegração em "A Luta Corporal" que chamou a atenção dos irmãos Campos para o seu nome? Gullar - Sim. Eles, mais o Décio Pignatari, lêem o livro e me escrevem uma carta, dizendo que ficaram muito impressionados, que era realmente um livro inovador, que arrebentava com a poesia velha. Diziam que eles queriam me conhecer. Eles tinham idéias e eu permiti vir. Folha - O contato com eles foi mantido no momento deste drama que você enfrentava com a linguagem? Gullar - Não, já tinha passado esse drama, porque ele ocorreu no dia seguinte ao poema. Eu contei isso para mostrar o nível de, vamos dizer, intensidade com que se deu esse negócio. Mas depois tudo voltou ao normal e eu simplesmente parei de escrever. Eu não queria escrever na outra linguagem e não queria escrever nessa porque eu achava que isso era o resultado de uma explosão e eu não podia academizar a explosão, seria o cúmulo: o acadêmico da explosão. A carta deles chegou meses depois, quando eu já estava retomando a linguagem de outra maneira. Folha - Os três vieram encontrar você no Rio? Gullar - Foi só o Augusto de Campos que veio. Fomos nos encontrar num restaurante chamado Spaghettilândia, no Rio, num sábado de Carnaval, pela manhã. Conversamos, e ele me disse o que pretendiam fazer e eu disse o que eu tinha feito. Ele falou: "Nós reconhecemos a importância do teu trabalho, mas a tua é uma linguagem destrutiva, presta um serviço por isso, mas o que nós queremos fazer é uma coisa construtiva." Eu respondi: "Tudo bem, está certo". O Augusto não gosta que eu conte, ele diz que é mentira, mas na época, ele falou quais eram os poetas que julgava importantes dentro dessa visão dele. Citou Mário de Andrade, Carlos Drummond, João Cabral. Aí eu falei: "Mas eu acho que o poeta que mais se aproxima, a meu ver, de uma nova linguagem é o Oswald de Andrade". Ele falou: "Ah! o Oswald é um moleque, brincalhão, eu acho que você está enganado". "Não estou enganado, você relê, se você leu, 'Pau Brasil' e pelo menos 'Serafim Ponte Grande' é..." Eu até usei essa expressão: "É uma linguagem de capim, que me dá a sensação de algo nascendo. Acho muito novo o que ele está fazendo". Ele respondeu: "Tudo bem, eu vou ver". Texto Anterior: Um livro vivo Próximo Texto: A poesia da caixa d'água Índice |
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