São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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A poesia da caixa d'água

Da RedaçãoUm dia, Gullar propôs a Hélio Oiticica que explodissem as obras de arte de uma exposição. A idéia não passava de um paroxismo da atitude de vanguarda, que ele se preparava para abandonar naquele final dos anos 60, como narra a seguir.

Folha - Você diz que por outro caminho chegou em coisas que os paulistas estavam formulando, mas, na verdade, vocês estavam traçando rumos opostos.
Gullar - São opostos. A tese que eu defendo, sem nenhuma maldade é que o concretismo não passa de uma continuação da geração de 45. Porque ele é o formalismo levado às últimas consequências. Não é à toa que eles colocavam o João Cabral, que leva a cabo os princípios de 45, como o próprio exemplo do caminho que se tinha que seguir.
Folha - Você esteve presente a alguma visita de Manuel Bandeira à exposição concretista no Rio, em 1957?
Gullar - Não, não estive. Depois eu conversei com ele, porque ele escrevia no "Jornal do Brasil" onde eu trabalhava. Ele achava muito interessante. Tinha uma grande tolerância com os jovens, uma coisa meio compreensiva e uma capacidade de absorver essas coisas, de não se escandalizar. Ao mesmo tempo, tinha uma forte visão crítica. Eu me lembro que quando o pessoal começou a falar muito em Souzândrade, ele chegou para mim e falou assim: "Mas o Souzândrade, ele é tão chato, não é, Gullar?" Realmente, o Souzândrade é um pé no saco.
Folha - Quando começou a ruptura do grupo?
Gullar - Começou na verdade no dia da inauguração da exposição aqui no Rio. Ao falar aos jornalistas, o Décio já dizia, com toda razão, que o meu poema "Formigueiro" não era poesia concreta. Disse na minha frente. Realmente, não era a poesia concreta na concepção deles. Na verdade, era a minha própria experiência.
Essas discordâncias estavam na natureza das duas experiências, que eram diferentes. Então, ia conduzir a uma ruptura inevitavelmente, porque dentro da visão deles a poesia deveria caminhar cada vez mais para uma construção racional controlada, enquanto na minha visão, eu simplesmente queria encontrar novas formas para continuar a expressar as minhas experiências existenciais, poéticas. Nesse sentido eu era mais conservador do que eles, não é?
Então, quando eles mandaram para o "Suplemento Dominical" do "Jornal do Brasil", que eu dirigia, um artigo dizendo que a poesia deveria ser feita, a partir daí, segundo equações matemáticas, eu liguei para o Augusto. Falei que nós publicaríamos o texto, mas que aquilo iria marcar a ruptura. Eles quiseram publicar mesmo assim. Então, editamos ao lado um outro documento, escrito por mim, chamado "Poesia Concreta, Experiência Fenomenológica". Isso marcou a cisão. E o meu artigo está na base do neoconcretismo.
Folha - A ruptura foi pessoal ao mesmo tempo?
Gullar - Não, eles continuaram colaborando no suplemento. Agora, é natural que as discordâncias fossem se acentuando, porque cada vez mais eles se firmavam nessa linha e nós na outra, o que foi até saudável, porque enriqueceu o movimento, com a autenticidade de cada um dos lados assegurada. Pior seria se ficasse uma indefinição e se um e outro começassem a adotar idéias com as quais não concordassem, não é verdade?
Folha - Como você começou a sua militância política?
Gullar - A minha participação política é consequência de duas coisas: da minha própria experiência literária e do processo social brasileiro. Do lado literário, fiz os poemas espaciais em que havia uma participação da mão do espectador, do leitor. Mas, depois, resolvi fazer um poema, "Enterrado", em que a participação é a do corpo, o cara entrava no poema. Esse poema "Enterrado" foi feito na casa do Hélio Oiticica. O pai dele estava construindo uma casa nova e ia fazer uma caixa d'água. O Hélio conseguiu que o pai deixasse construir o poema no lugar.
O poema era uma sala de dois metros por dois no fundo do chão, com uma escada. O sujeito descia e encontrava uma série de cubos, um dentro do outro, e embaixo do último a palavra "rejuvenesça". Esse poema foi construído e, num domingo, o estado maior neoconcreto foi lá inaugurar.
Só que tinha chovido na noite anterior e quando o Hélio abriu a porta, tinha dois palmos d'água, os cubos estavam flutuando e o poema tinha virado caixa d'água. Assim acabou o único poema com endereço da literatura brasileira.
Toda essa coisa que eu fazia era ao mesmo tempo com paixão e uma leve ironia. Mas eu vi que as coisas começavam a sair do controle. Então, eu chamei o Hélio Oiticica na casa do Reinaldo Jardim e falei assim: "Eu vou propor uma coisa maluca: vamos fazer a última exposição neoconcreta. A gente coloca um dispositivo explosivo dentro de cada obra e põe um detonador no canto da sala. Abre a exposição e, às seis da tarde, a gente anuncia que acabou a exposição. Todo mundo sai depressa e nós detonamos a explosão".
Eu me lembro que o Hélio Oiticica me olhou logo assim. Porque, dizia eu, existe obra de arte que é para acabar de repente e droga de arte, que é a que fica no museu. Então tem que explodir tudo. Era uma espécie de terrorismo, característico de toda vanguarda. O Oiticica suava frio, porque eu era o papa. Ele falou: "Espera lá, eu não vou destruir minhas obras". O que eu falava era verdade e era brincadeira ao mesmo tempo. Assim, fui preparando a minha retirada, porque eu sentia que tinha chegado a uma linguagem que era interessante, mas me inibia.
Folha - Foi então que você se engajou na política?
Gullar - Não, o que importa na verdade, a grande virada na minha vida, foi o seguinte: recuperar a linguagem. Veja bem, uma coisa é você se opor à vanguarda porque você não entende, porque é conservador. Outra coisa é você ter ido até às últimas consequências como eu fui. Eu simplesmente cheguei à conclusão de que eu tinha que recompor a minha linguagem para poder dizer a minha experiência de vida.

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