São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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A MENTIRA DE JULIÃO

DA REDAÇÃO

A seguir, Ferreira Gullar conta com se ligou às Ligas Camponesas de Francisco Julião e como abandonou o movimento ao descobrir que tudo não passava de uma brincadeira de muito mau gosto.

Folha - Você chegou a se ligar a algum movimento político armado?
Folha - Armado não, nunca. Sempre achei isso uma babaquice. A política começa mesmo quando fui para Brasília em 1960, 1961. Ali eu reencontrei os candangos e vi –enquanto minha linguagem poética entrava de novo em crise– que eu já não tinha nada a ver com a minha gente, que a tinha abandonado.
Comecei a questionar o urbanismo, as concepções daquela cidade nova. Embora achasse muito bonita, extraordinária, a arquitetura do Oscar Niemeyer, a vida era difícil. As próprias pessoas que haviam construído a cidade estavam marginalizadas. Um dia, vi em Brasília um cartaz com uma letra toda torta, onde estava escrito assim: "nóis que é trabaio". Aquilo foi um choque para mim e eu falei: "Porra, está tudo errado". Essas coisas foram se juntando.
Um dia, um amigo meu me empresta um livro chamado "La Filosofia de Karl Marx". À noite, em Brasília, não tinha o que fazer e comecei a ler o livro. Na primeira parte, se expunha o pensamento de Marx, na segunda, se demonstrava como o católico não pode aceitar aquele pensamento. Eu li só a primeiro parte. Virei marxista.
Desenvolvi uma grande afinidade com Marx, porque o tema fundamental da sua obra é o trabalho e o trabalho poético, da arte, era uma coisa fundamental para mim. Não é à toa que o meu primeiro poema se chamou "O Trabalho". A leitura do Marx e a realidade de Brasília me fizeram voltar a ser brasileiro.
Folha - Como é que foi a sua aproximação com o PC?
Gullar - Eu primeiro me liguei a Francisco Julião, às Ligas Camponesas, porque eu achava que o PC não era de nada. Todo mundo dizia isso e eu também achei. O Julião me dissera que tinha 300 homens que podia armar a qualquer momento e fazer a revolução. E eu, com a minha cabeça de pequeno burguês inexperiente, achei que aquilo que era o caminho, que era a verdade. Era tudo mentira do Julião. Ele não tinha ninguém armado. Quando eu descobri isso, entrei para o partido.
Folha - Como você se aproximou do Julião?
Gullar - Ele me procurou, através de um amigo, que me conhecia e me convidou primeiro para ajudar num jornal que ia ser feito, o "Nova Liga". Entrei lá em função disso. Mas rompi, porque houve uma série de coisas que mostrou que aquilo ali era uma brincadeira. Na verdade, o Julião era um autoritário. E nós descobrimos que o Clodomiro Leite, organizador das Ligas e o braço direito de Julião, tinha uma amante no Rio, outra em Belo Horizonte, outra em Goiânia e vivia de casa em casa... Ele tinha dólar, que recebia de Cuba, e aí cooptava as garotas que participavam do movimento, as camponesas.
Quando nós descobrimos o que estava havendo, fomos levar isso ao conhecimento do Julião. O Julião falou: "Não quero saber de vocês, intelectual para mim não vale nada, eu prefiro o Clodomiro mesmo". Caímos fora. Então, é claro que aí o pessoal do partido me procurou.
Folha - Você permanece um comunista?
Gullar - É um pouco simples dizer sim ou não. Eu acho que a sociedade tal como está aí não é justa. Não é justa e tem que ser mudada. O desejo de justiça é inato ao ser humano. Ninguém se conforma com a injustiça, não é? Mas a experiência mostrou que é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que se mudar a sociedade. Tomar o poder é mais simples até do que mudar efetivamente a sociedade, criar uma nova sociedade.
O maior exemplo disso é a própria União Soviética e a derrocada dos países do Leste europeu. Aquilo ali é a maior demonstração de quanto é difícil criar uma sociedade em que o homem seja o sujeito dela. Por que, de fato, o que é o capitalismo? O capitalismo é a natureza. O capitalismo é a espontaneidade do processo natural e por isso mesmo ele é injusto, porque ele é a natureza, é igual à natureza.
A natureza come um, esmaga o outro. Agora, nós, seres humanos, queremos um pouco de ordem no mundo. O socialismo é a tentativa de organizar o processo, de planejar, de o homem ser o futuro desse processo. Só que é muito difícil planejar a vida. E eu me pergunto até, nesta altura, se é possível planejar a vida. É um sonho louco, porque a vida é uma coisa surpreendente, criativa, duma complexidade sem limites.
Então, quando você enquadrá-la num planejamento o que vai acontecer? Você vai criar um estado totalitário. Não tem saída. Isso foi o que aconteceu. Eu acho que independente de qualquer coisa, o que há é o seguinte: um Estado não pode ter filosofia. Se o Estado tem, ele acaba com as outras filosofias.

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