São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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O CADÁVER DAS VANGUARDAS

DA REDAÇÃO

Papa da modernidade nos anos 60, hoje Ferreira Gullar não hesita: as vanguardas foram boas, mas estão mortas. A seguir, ele fala sobre o que considera ser o trabalho essencial da arte, agora.

Folha - Como é que o crítico que formulou a Teoria do Não-Objeto pode agora atacar as experiências de vanguarda?
Gullar - Eu nunca disse que as experiências de vanguarda são uma fraude ou destituídas de valor. Pelo contrário, estou convencido de que, a partir do final do século 19 até meados deste século, a busca de novas dimensões das linguagens artísticas só ampliaram a experiência estética do homem.
Eu me considero produto e herdeiro desses inovadores. E mais que isso: tenho verdadeira paixão por suas obras, que me atingem mais profundamente do que qualquer dos gênios do passado remoto. Mas, do mesmo modo que um dia o impressionismo se esgotou, e o cubismo se esgotou, e o futurismo, o construtivismo, o dadaísmo, o surrealismo, assim, a proposta vanguardista em seu conjunto também se esgotou.
Só que, como já não resta mais nada a propor, alguns artistas e instituições oficiais insistem em manter o cadáver em cima do cavalo para fingir que ele está vivo. Como não tenho compromisso a não ser com a verdade e com a arte efetivamente criadora, cometo o atrevimento de dizer o que muita gente procura ocultar. E não faço isso para provocar escândalo, mesmo porque, para mim, a arte é e sempre foi impasse e indagação. O impasse é fonte de criação.
A morte da arte está na fórmula, na suposição de que está tudo resolvido. Antigamente, o academicismo se definia por um conjunto de regras a que o artista devia obedecer, hoje ele se define pela ausência total de limites e propósitos. O que define a falsa arte é a facilidade e o conformismo, tanto faz que estejamos conformados com as regras clássicas ou com o espontaneísmo irresponsável.
Folha - E o que você acha que faz a arte verdadeira?
Gullar - Olha, durante uma boa parte da minha vida achei que o poeta, o artista tinha que mudar a consciência das pessoas e trabalhar diretamente para isso, fazer da sua obra um instrumento dessa mudança. Hoje eu penso de maneira diferente. Eu acho que a arte é uma linguagem e um modo de conhecimento próprio, autônomo. Você só faz arte e só atinge efetivamente alguém se você faz arte mesmo.
Antes de fazer arte com esta ou aquela finalidade, você tem antes de tudo que fazer arte de fato. Fazer teatro de fato, bom, de alta qualidade teatral. Se esse teatro vai mudar a cabeça das pessoas, tudo bem, mas isso está em segundo lugar. O mesmo vale para a poesia, para a música, para o que for.
Folha - Quando você diz fazer arte mesmo, você quer dizer recuperar a tradição da arte?
Gullar - Não, não é a tradição, é a qualidade. Eu tenho que fazer boa poesia antes de mais nada. Se ela vai ser participante ou não, isso é outra coisa. Eu não acredito –como na época do CPC (Centro Popular de Cultura) a gente imaginava– que podia fazer um teatro de segunda categoria, mas que ele seria eficaz, porque iria ensinar às pessoas que o imperialismo explorava o país etc. Você nem conscientizava a pessoa nem fazia teatro.
Folha - Você esteve na Bienal Brasil, que ocorreu em São Paulo?
Gullar - Não, não tive tempo de ir lá.
Folha - Como é que você tem visto aí as artes plásticas brasileira?
Gullar - Olha, veja bem, nós estamos vivendo um período de transição em que existe de tudo. Neste momento, com o fim das ideologias, o que importa, o que ficou claro é a qualidade das coisas. O que a obra consegue explicar e comunicar. Por exemplo, eu vejo com espanto que se esteja anunciando que se vai fazer uma outra bienal cujo tema é o fim do suporte. Isso parece brincadeira, nessa altura. Eu entendo as dificuldades de quem faz as bienais, porque as bienais nasceram para mostrar as vanguardas. Mas não existe mais vanguarda e como é que a Bienal vai ficar, não é? Então, a Bienal fica fabricando coisas para poder subsistir.
Folha - Qual você acha que seria um tema para a Bienal?
Gullar - Eu não sei, não entendo disso. Eu acho que exposição de arte tem que expor arte. Não tem que ser dessa tendência ou daquela. Eu acho que tem que ver o que está sendo feito e expor. Não é o curador que vai dizer que arte deve ser feita. Tem cabimento, isso? Eu acho que é por o carro adiante dos bois.
Isso exclui os artistas com os quais ele não concorda e só bota gente que está de acordo com ele. E o que caracteriza hoje é uma pluralidade de caminhos. Tem aquele que faz a pintura figurativa, o que faz a pintura abstrata, o que faz a instalação, que faz o objeto, que faz a gravura...
Folha - Para você, tudo é igualmente válido?
Gullar - Desde que tenha expressão, trabalho, qualidade. Improviso de araque já passou de época. Botar aquele japonês para nadar numa piscina e ficar dando urros como na última Bienal, realmente, não tem mais cabimento.
Folha - Há um poema seu que diz: "Não é estranho/que um poeta político/ dê as costas a tudo e se fixe/ em três ou quatro frutas que apodrecem/ num prato/em cima da geladeira/ numa cozinha da rua Duvivier?" Esse poema reflete a divisão do poeta Gullar entre a poesia e a política?
Gullar - É a divisão e a integração. Sou um homem do meu tempo, um tempo marcado pelo combate ideológico que dividiu o mundo em dois. Não podia ignorá-lo. Nasci de uma família pobre, conheci dificuldades e privações. Não poderia fingir que nada disso aconteceu, além do mais vivendo num país de tanta desigualdade.
Em certo momento, quando minha própria poesia parecia chegar a um impasse definitivo e as questões sociais assumiam o primeiro plano da vida brasileira, descri da poesia como tal, desprezei-a e a reduzi a mero instrumento de conscientização política. Mas essa foi a forma de recuperá-la e renová-la. Foi a época do CPC, que durou pouco tempo.
Em seguida, aprendi que, para fazer poesia política, teria que primeiro fazer poesia, e tratei de dar qualidade poética aos poemas políticos. Durante anos, travei essa luta, construindo uma nova linguagem enraizada na fala comum. Até hoje, cada poema que faço reflete essa busca. Só escrevo quando acho que alguma coisa nova surge ali. Não sou viciado em poesia, não tomo entorpecentes.
Gostaria de observar, apenas, que, em geral, alguns críticos dão importância excessiva àquela fase puramente política de minha poesia, que durou apenas dois anos, e que não possui qualidade literária.

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