São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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A PRIMEIRA PAIXÃO

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Muito mais do que a poesia, a minha paixão é a pintura", diz Ferreira Gullar à Folha. "A primeira coisa que eu fiz foi pintura. Mas não sou pintor. Trata-se de escolha, de apostar tudo nas coisas. Se você não aposta tudo, você não é aquilo. Na poesia, eu joguei a minha vida, tirei todo o dinheiro do bolso e pus em cima da mesa, perder ou ganhar. Na pintura eu nunca fiz isso."
Há seis anos atrás Ferreira Gullar revisitou a pintura e começou a realizar uma série de desenhos que chamou de "Morandianos". O primeiro deles surgiu casualmente, feito com uma bic preta, numa folha de caderno. O tema eram garrafas e copos simplificados e geometrizados. Segundo o poeta, interessava-lhe "a possibilidade expressiva daquelas linhas que se repetiam numa espécie de achuriado".
Posteriormente, Gullar pintou alguns quadros inspirado nesses desenhos –sempre fazendo uso de cores frias– para, logo em seguida, retornar aos desenhos que, além de caneta esferográfica, passaram a ser feitos com lápis coloridos. Recentemente, introduziu o recurso da colagem.
O pintor Giorgio Morandi é mais do que uma referência. A certa altura de sua vida, Gullar fez várias cópias de quadros do artista italiano e o considera um de seus pintores prediletos. A aproximação com Morandi não deve ser feita apenas pelo emprego da natureza-morta. Mais do que a abolição da perspectiva e da pesquisa no plano, tão característica do cubismo, a arte de Morandi revela uma experiência profunda do tempo. A força desta série de natureza-mortas criadas por Gullar nasce exatamente do contraste entre a repetição estrutural dos trabalhos e as novas configurações plásticas que assumem a medida que incorporam diferentes texturas e materiais.
Este procedimento pictórico reafirma a importância da espacialidade na poesia de Gullar. Penso que é justamente a partir deste esforço de observação, deste contínuo resgate da composição que surge a intensidade plástica de alguns temas da sua poesia como, por exemplo, as frutas apodrecendo no prato. Em outras palavras, é a relação marcadamente construtiva com o espaço que prepara a irrupção trágica do tempo, revelando como a morte se infiltra nas frutas e nos objetos. (Augusto Massi)

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