São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
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Três pastéis de côco

DA REDAÇÃO

A seguir, o poeta Ferreira Gullar fala dos últimos dias em São Luís do Maranhão e como embarcou no Lloyd Aéreo rumo ao Rio de Janeiro, em 1951.

Folha - Você começou a escrever "A Luta Corporal" no Rio?
Gullar - Não, comecei em 1950 e terminei em 1953. Vim para o Rio em 1951. Sobre o tema do galo, por exemplo, escrevi em São Luís um primeiro poema, inspirado em um anúncio do Sal de Frutas Eno, que tinha uma silhueta preta de galo com o bico aberto. O poema é sobre esse galo plano, que canta, apesar de ser de papel. Mas, depois, eu escrevi um outro, "Galo galo", que é um poema do galo real. Não quis botar os dois no livro.
Folha - O que o poema do galo tem a ver com um tal de "manifesto antiquentista", que você redigiu em São Luís?
Gullar - Foi um manifesto maluco que escrevi, convidando as pessoas, os escritores, o verdureiro, todo mundo, para uma manifestação. Na medida em que eu tomei conhecimento da poesia moderna, botei na cabeça que a poesia não tinha que ser sentimental, "quente". A poesia tinha que ser uma coisa fria, intelectual. Então, antiquentista quer dizer isso: contra a poesia "quente", por uma poesia mental.
Chegou a haver uma reunião no Hotel Central, acho, e uma porção de gente foi para lá. Um jornalista paraense, que vivia no Rio de Janeiro e colaborava no "Jornal de Letras", estava presente. Ele quis me entrevistar e, no dia seguinte, foi à minha casa.
Nessa época, eu tinha escrito dois poemas, "A Galinha" e o "Galo galo", e ele me pediu os dois para publicar em Belém. O que aconteceu? Eu soube anos depois, do Oliveira Bastos, que é paraense e estava em Belém, que esse jornalista publicou a entrevista e os poemas e, naquela noite, nos bares, só se falava nisso entre os jovens poetas. E começaram a surgir movimentos no Pará: "O Frango", "O Marreco", "O Pinto"...
Folha - Então, você já posava de poeta de vanguarda?
Gullar - Ah! Já era um poeta, queria ser. Tinha feito a opção. Um dia, quando tinha 19 ou 20 anos, comprei num sebo dois livros, um de lições de filosofia e outro de contos do Hoffmann, que eu nem sabia quem era.
Comecei a ler aquele livro encardido, com as páginas cheias de carunhos, de fungos. Era uma coisa que me impressionava mal, porque eu tinha passado a minha vida no sol, brincando, pegando passarinho, numa cidade, uma ilha verde deslumbrante, que é São Luís, iluminada, tropical.
Então, de repente, vi o ser humano, aquele homem dentro do mundo da cultura, e o mundo começava a ser ruim, com percevejo, morte, doença, contradições. É o mundo dos conflitos, da responsabilidade. Toda essa perda do paraíso se configura um pouco nessa página de livro de caruncho.
Eu me perguntei diante daquele livro: "Que sentido tem fazer isso, literatura, para terminar num sebo, podre, e dizendo coisas que não interessam ao mundo?" Eu me lembro bem: deitado na minha rede, no meu quarto, naqueles dias de verão, a ventania que sopra sem parar na cidade, o rumor das copas das árvores, tudo era como se o século estivesse passando por cima do telhado, e eu dentro daquela coisa da vida e da natureza...
Quando a vida virou conflito, eu escolhi a literatura. Mas a literatura é isso, esse livro velho, podre, que não me interessa? Então, eu disse: "Bom, o único sentido será se isso servir para mudar alguma coisa". Tinha que mudar, a começar por mim. Aí, eu fui lendo e fui rasgando. Não mudava, rasgava. Não mudava, rasgava. Fiquei complacente comigo mesmo, mas isso foi uma coisa decisiva. Nessa tarde, a minha cabeça mudou realmente. Comecei a pensar a literatura como compromisso, e isso já está em "A Luta Corporal".
Folha - Como é que foi a sua chegada ao Rio?
Gullar - Eu vim de avião, de LLoyd Aéreo. Vendi tudo o que eu tinha, que nem na música do Caymmi, comprei um terno de tropical marrom, que era o uniforme obrigatório para a cidade –e vim.
Fui morar no bairro da Glória, numa vaga de quarto, com outros dois estudantes. Tentei um emprego no "Jornal de Letras", que tinha me premiado e, portanto, tinha a obrigação de me dar algum amparo. Lá, foram muito afetuosos comigo, mas não tinha lugar para mais ninguém.
Foi o João Condé, maranhense, que me arrumou um lugar na revista do IAPC (Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários), que ele dirigia. Era uma revista deste tamanhinho, e saía, quando saía, uma vez por mês. Empregava uma multidão de escritores, desde o João Condé até o Breno Acioly, o Lúcio Cardoso, o Hélio Pelegrino. Eu era o único que trabalhava. Mas não trabalhei logo de cara. Quando fui fazer uma chapa de pulmão, descobriram que eu estava com tuberculose. Tive que me tratar primeiro. Fui para o sanatório de Correias, no Estado do Rio, onde fiquei três meses.
Folha - Você não sabia que estava tuberculoso?
Gullar - Não sabia. Era uma coisa muito no começo, e eu, que era magro, sempre fui, só estava um pouco mais, e com um certo cansaço. Iria morrer se não arrumasse esse emprego, porque descobriria a doença tarde demais.
Quem me tratou foi um médico muito inteligente, também escritor e sociólogo, J. Fernandes Carneiro, amigo do Jorge de Lima. Ele me disse: "Não pensa que você vai usar essa tuberculose para fazer poesia, como o Manuel Bandeira, porque eu vou te curar". Naquela época, por sorte, tinham descoberto os antibióticos. Eu me tratei com Streptomicina e Apassal.
Eu morava nessa época no quarto de empregada da casa de um amigo meu, maranhense. Eu me lembro que, uma vez, saí para conversar na casa de Mário Pedrosa e o papo –eram os anos 50 e pouco, a guerra fria, a bomba atômica...– tinha girado em torno de coisas pessimistas. Eu já era pessimista por natureza e, depois daquilo, achei que o mundo ia acabar.
Voltei para casa de bonde, de Ipanema a Laranjeiras, de madrugada. Quando entrei no quartinho de empregada, a cabeça atordoada, o mundo se acabando, vi um pratinho com um guardanapo na mesa de cabeceira. Levantei o guardanapo e tinha três pastéis embaixo.
Hesitei, não estava para comer pastéis àquela altura. Me deitei, mas estava com fome, e eram pastéis de côco. Eu adorei e comecei a comer todos eles e a pensar: não, a vida não é tão ruim. E comecei a rir: mas que desespero é esse o meu que não resiste a três pastéis de côco?
Eu me lembro bem disso, porque minha vida foi toda um aprendizado feito assim. Há um lado de mim que sempre critica e não nega a evidência. Vou às últimas consequências nessa capacidade de me criticar, de não me levar demasiado a sério, a ponto de perder a visão crítica.

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