São Paulo, domingo, 28 de agosto de 1994
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Memória andarilha

EDEMAR CID FERREIRA

O Brasil pode até ser mesmo um país sem memória, mas certamente isso não ocorre por falta de museus, mas muito mais pela imobilidade deles. São 1.253 ao todo, pelo inteiro território nacional. Mais do que nos Estados Unidos. Um fato não exclui o outro. Pode até explicar, jamais justificando-o, é claro. Pois a política museológica brasileira favorece a dispersão e a fragmentação, tornando mínimo o consumo da memória pela população.
A solução ideal para acabar com a dispersão dos acervos é evitar a imobilidade dos museus, levando-os até o cidadão e não os mantendo numa postura estática, esperando que o homem comum se obrigue a visitar suas instalações físicas.
Tal conceito moderno do museu dinâmico já está sendo levado à prática no Brasil, com muito sucesso, modéstia inclusa, pela Fundação Bienal. Seria talvez ocioso falar do sucesso da exposição "Brasil Século 20" na sede da Bienal, em São Paulo. Mas é útil divulgar o êxito obtido pela primeira parada da excursão que a mostra faz pelo Brasil e fará por outros países.
Sem que nenhum órgão oficial tenha despendido um precioso centavo de real, milhares de gaúchos já tiveram o privilégio de ver o que de importante os artistas plásticos brasileiros produziram neste século.
Graças ao tirocínio de empresários privados sintonizados com seu tempo, foi possível levar a arte brasileira deste século ao Rio Grande do Sul e ainda proporcionar recursos à Fundação Bienal, que aufere lucros legítimos com tal romaria, com novas paradas já acertadas para Fortaleza, Rio, Brasília, Tóquio, Nova York e Los Angeles.
A Fundação Bienal é pioneira na experiência, mas não quer exclusividade nela. Ao contrário, está disposta a utilizá-la em benefício da concentração dos acervos e da democratização do consumo da memória nacional. "Brasil Século 20" é um paradigma de tal política, por representar o resultado de uma integração de acervos que pode muito bem ser praticada sem gastar muito do escasso e suado dinheiro do contribuinte brasileiro.
Basta o governo repetir, no caso das artes plásticas, a prática que vem sendo adotada por universidades, a maioria delas públicas, e institutos de pesquisa, que estão evitando o desmanche de bibliotecas notáveis, em poder de patrícios nossos, por toda a extensão territorial deste país-continente.
Quanto à fragmentação, é útil lembrar que esse problema não se limita aos museus, sejam públicos ou privados, mas atinge também as coleções particulares.
Muitos brasileiros são possuidores de acervos particulares de grande importância. Uns colecionam mobiliário brasileiro; outros, arte pré-colombiana e cerâmica marajoara; há quem prefira artes plásticas dos anos 60, com ênfase no concretismo.
Nenhum deles, contudo, seja qual for o valor de sua coleção, tem a mínima segurança do que pode ocorrer com os objetos reunidos ao longo de uma vida inteira, com dedicação, pela inexistência de uma política clara de aquisição de acervos culturais importantes pelo Estado brasileiro.
As opções apresentadas a estes colecionadores são quase sempre perversas. Eles podem, por exemplo, doar seus valiosos objetos a alguma fundação. Para o colecionador, não é uma solução justa, convenhamos. Nem muito menos para seus herdeiros, pois imenso pode ser o valor financeiro de tais coleções no mercado.
Alguns, por conta disso, têm preferido dispor dos objetos adquiridos e reunidos ao longo de toda uma vida, partilhando-os entre os herdeiros, leiloando-os separadamente ou, ainda, vendendo-os a museus ou colecionadores privados do exterior. Dessa forma, criminosamente fragmentada, a memória brasileira tem sido exportada.
Cruel e absurda é tal opção, tanto mais que ao observador arguto torna-se evidente a solução correta para a tragédia cultural da evasão da memória brasileira. Tal solução é a instauração de uma política museológica racional, que permita a aquisição permanente de acervos e o consumo itinerante da memória. Em vez de dividir acervos, somar esforços.
O Estado brasileiro, mísero em idéias e pródigo em pedidos de desculpas, poderá alegar a falta de disponibilidade de recursos para a aquisição das coleções que se esvaem em silêncio para fora de nossas fronteiras. A alegação é verdadeira, mas ninguém pode lhe negar também indigência de espírito. Bastaria agir com inteligência e sensatez.
Não é viável, nem desejável, sair por aí fechando museus para economizar os recursos suficientes para a aquisição das coleções particulares. Simplesmente, esta não é uma solução necessária.
Necessário é apenas reconhecer que muitos desses museus melhor usariam seus próprios acervos se se unissem a outros para reduzir seus custos e melhorar seu conteúdo.
Isso é possível, desde que se prepare um calendário de exposições temáticas de objetos espalhados (e mal conservados) pelos muitos museus brasileiros, com honrosas exceções.
Urge democratizar o consumo da memória com a itinerância das exposições temáticas, levando o museu até o cidadão, como o faz a "Brasil Século 20", da Fundação Bienal, e não escondendo os objetos de arte em prateleiras estáticas, que o cidadão interessado é obrigado a visitar.
Tal prática pode ser adotada em associação com uma política de integração de acervos. Evidentemente, para tanto algum recurso será exigido. Muito menos, porém, do que se pensa. O museu andarilho resulta muito mais da vontade política e do uso da inteligência do que propriamente do fluxo de caixa.

Texto Anterior: O Brasil, o real e os acordos do Gatt
Próximo Texto: Atlas; Prazer do poeta; Fim-de-semana; Bienal quente; Brancos no paraíso
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.