São Paulo, quinta-feira, 1 de setembro de 1994
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Anatomia do suspiro

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Os técnicos do governo falam em "inflação inercial" e ressuscitam a bela metáfora do ex-ministro Marcílio Moreira: "suspiro inflacionário" –que é sempre o último. De suspiro em suspiro, a inflação inercial não é tão inerte assim, nem os suspiros que emite por ocasião dos planos governamentais são realmente suspiros.
Os entendidos afirmam que o homem é linguagem. Tudo se resume nisso: somos o que falamos (ou pensamos) em termos de vocábulos. No princípio –diz o evangelho de João– era o verbo. Depois veio o resto.
Lembro um fato que aconteceu comigo em Portugal. Fui receber uns direitos autorais, pagaram-me em escudos. Como ia para a Áustria e precisava reforçar os escassos dólares que levava, perguntei a quem me pagou como faria para trocar os escudos em notas verdes. Ele me mandou ao equivalente do Banco Central local; precisaria de certidões, estampilhas, o diabo para trocar alguma coisa parecida com US$ 1.000. Como tinha pouco tempo, indaguei se não havia o mercado paralelo. O português se sentiu ofendido e informou: "Faço-lhe a justiça de considerá-lo ignorante em cousas portuguesas! Nós não temos mercado paralelo!". Encalistrado, expus meu problema: tinha menos de 24 horas para trocar aqueles escudos, não podia me habilitar à rotina das autoridades financeiras de um país que eu tanto amava e respeitava, mas... não haveria um jeito, um macete qualquer que me quebrasse o galho? Constatando a minha angústia, o português esclareceu: "Vejo que o seu caso é típico! O senhor precisa recorrer ao nosso mercado anormal!"
Por espantosa coincidência, o mercado "anormal" do português era a mesmíssima coisa que o mercado "paralelo" do Brasil. Taí um exemplo da força, do encanto e da cilada das palavras. Falar em suspiro inflacionário tem alguma coisa a ver com o mercado anormal.
Os índices que foram divulgados semana passada mostram que o tal suspiro não significa uma agonia, um estado terminal. Antes, é um suspiro saudoso, suspiro da amante provisoriamente traída pelo cafetão que dela vive.

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