São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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O caos organizado de Balanchine

MINDY ALOFF
DA "THE NEW REPUBLIC"

Num dia de primavera na década de 60, uma adolescente viajou de sua cidade natal até Manhattan para fazer um teste para a School of American Ballet, a escola de George Balanchine. Ela a escolhera como sua meta porque sabia que era a melhor escola de balé, e Balanchine o melhor coreógrafo.
O teste foi feito sob a forma de uma aula, que durou uma hora. A garota achara que estava preparada para qualquer coisa: saltos, voltas, beats, equilíbrios prolongados. Mas não lhe foi pedido nenhum dos passos de virtuose que ela havia aperfeiçoado: nenhum "fouetté", nenhuma difícil "petite batterie"'. No fim do teste, a professora olhou para ela de uma certa distância e conversou com um colega. Quando terminaram de conversar, a garota ficou sabendo que falhara no teste. O problema não era sua dança; se esse fosse o único critério, ela teria sido admitida no nível intermediário, com expectativas de progredir. O problema era seu corpo, inadequado para essa escola específica. Ela era larga nos lugares onde devia ser estreita, carnuda onde deveria ser ossuda.
Aquela garota era eu, e aquela tarde constituiu uma das mais importantes lições que jamais aprendi sobre o balé como arte teatral. Não existe uma coisa chamada mérito universalmente reconhecido, mérito no abstrato, conquistado apenas por esforço e compromisso, força de vontade e constância de estudos. O mundo precisa estar preparado, por forças e acontecimentos que estão além de nosso controle, para encontrar mérito em nossos esforços. É preciso ter uma aparência determinada, numa época e num lugar determinados; é preciso ser vista de um ângulo determinado; é preciso oferecer o que é apropriado para um determinado contexto.
Decepções grandiosas
A história da carreira de George Balanchine é marcada por decepções e desencontros, numa dimensão grandiosa e cruel. Ele conheceu empresários ditatoriais, incluindo Diaghilev; figurinistas insensíveis; rivais invejosos, que o impediram de obter trabalho quando estava sem dinheiro; críticos que prestavam muita atenção a seu trabalho e o odiavam (ou que aplaudiam seus esforços, na imprensa, e cochilavam durante seus espetáculos); bailarinas que rejeitaram seus pedidos urgentes para que trabalhassem com ele; cineastas que juraram preservar seu trabalho para a posteridade e que, durante o processo de produção, arrasaram as próprias qualidades que ele buscava concretizar.
Seria de se supor que pudesse contar com o apoio dos compositores, mas não foi isso que aconteceu. Alexandra Danilova, em suas memórias, recorda que Balanchine foi ao camarim de Rachmaninoff para lhe dizer o quanto admirava seu trabalho, tanto que queria fazer uma coreografia com sua música. Rachmaninoff o expulsou do camarim –Um balé! Com seu concerto!!! Danilova acrescenta que pelo resto da vida de Balanchine, toda vez que ele ouvia o nome de Rachmaninoff, resmungava "música ordinária".
Desde o início de sua vida de coreógrafo –Balanchine fez seu primeiro balé aos 16 anos–, ele havia sido atacado pelos nomes mais importantes do que ele, em seu campo de trabalho. Elizabeth Souritz, historiadora moscovita da dança, registrou algumas instâncias desse escárnio em seu livro "Soviet Choreographers in the 1920's", e elas incluíram acusações de erotismo (seus detratores não eram de todo burros), "vulgaridade teatral", amadorismo e "inquietação rebelde".
Balanchine também conheceu a rejeição que pode ser imposta pela política e pela natureza. Quando Kirstein o chamou para ir aos Estados Unidos, em 1933, Georgi Melitonovich Balanchivadze (seu nome de batismo) já havia passado frio e fome durante a guerra civil que seguiu-se à Revolução Russa, e havia abandonado sua terra natal, seus pais e irmãos. (Depois que deixou a Rússia, em 1924, aos 20 anos, nunca mais voltou a ver sua mãe.) Em 1929, com a morte de Diaghilev –o homem que o rebatizou e que abriu os Ballets Russes a seus ensinamentos e sua coreografia–, Balanchine perdeu um segundo lar.
Fez trabalhos como na Europa, mas não encontrou qualquer segurança. Sua tentativa de dirigir sua própria companhia, a Les Ballets 1933, durou pouco. Quando Balanchine chegou em Nova York a bordo do "Olympic", já perdera um pulmão devido a uma tuberculose. Duas mulheres o haviam abandonado. Tamara Toumanova –a bailarina que Balanchine descobriu e promoveu, e que pretendia levar consigo aos Estados Unidos como exemplo eloquente de suas idéias e esperanças– fora obrigada, de última hora, a permanecer na Europa, devido a um truque contratual mesquinho do Coronel de Basil, o inescrupuloso diretor do Ballets Russes de Monte Carlo.
Gênio desempregado
Em 1935, em Nova York, Balanchine já corria pela cidade montando espetáculos para o American Ballet, para o Metropolitan Opera, para o Ziegfield Follies (onde criou para Josephine Baker um número que a colocou entre quatro bailarinos "Sombras", todos eles brancos) e para bailarinos individuais dançarem em festas e recitais. Por uma ou outra razão, todos seus esforços davam em nada.
No final dos anos 40 Balanchine já havia criado alguns de seus maiores balés, havia finalmente conquistado a Broadway e Hollywood, mas ainda não conseguira um emprego estável com uma companhia de balé. O New York City Ballet foi inaugurado em 1948, mas ele só começou a receber um salário de mestre de balé nos anos 60, quando a companhia recebeu apoio da Fundação Ford.
Como Balanchine conseguiu sobreviver a todas as dificuldades com graça e equanimidade, e durante a maior parte do tempo sem mau humor ou desespero?
Uma das razões é que ele acreditava na existência de Deus. Outra é que mergulhava a fundo no trabalho. Balanchine também possuía uma capacidade milagrosa de entregar-se a seus próprios extremos. Quando precisava de pessoas, era o mais sociável dos companheiros. Quando precisava de si mesmo, pegava o que precisava, sem medir extremos.
Além disso Balanchine não era apenas um artista que havia passado por provações, era também um artista russo expatriado com um gosto aristocrático. Ele sabia ser duro. "Ninguém está interessado em suas lágrimas, querida", disse certa vez à jovem Francia Russell, cuja carreira de dançarina, professora e montadora de seu trabalho supervisionou com meticuloso cuidado. Ruthana Boris contou que Balanchine disse a ela: "Na realidade, sou um homem morto. Eu deveria morrer e não morri, de modo que tudo que faço agora é como uma segunda chance. Não olho para trás. Não olho para a frente. Só olho para o agora".
Mesmo quando condenado a subsistir em condições difíceis, Balanchine não abriu mão de seus grandes sonhos. Um elemento incrível de seus balés é que as miniaturas prefiguram versões mais grandiosas delas mesmas, enquanto os empreendimentos grandiosos evocam as sementes do passado.
A coreografia de Balanchine não tem qualquer nostalgia do tipo de virtuosismo repetitivo que estende o equilíbrio suspenso. Balanchine nunca fez uma coreografia na qual se exigisse que uma bailarina fizesse 32 fouettés consecutivos. Ele sequer gostava de piruetas múltiplas demais: duas ou três podem ser discernidas pela platéia e apreciadas individualmente, mas a partir de cinco ou dez, elas só podem ser contadas.
A grande ironia da visão de Balanchine da técnica do balé, que foi frequentemente criticada por ser "mecânica" ou "desumanizadora", é que é profundamente enraizada no sentimento cego, e não em imagens aperfeiçoadas com a ajuda de um espelho. A aparência de suas danças não é tão importante quanto se elas comunicam as mais minúsculas nuances do que o dançarino vive internamente, enquanto dança. Quanto mais energizada a dança, mais rica a experiência.
Os filmes de Balanchine ensaiando dançarinos demonstram que o importante para ele era que eles compreendessem a mecânica dos passos, e que ao executá-los, conferissem a eles seu valor integral enquanto gestos energizados. A George Balanchine Foundation, um ramo da Balanchine Trust, vai lançar no futuro próximo, com a Nonesuch Records, uma das mais importantes chaves ao legado de Balanchine a ingressar no domínio público: uma enciclopédia de técnicas de Balanchine, em nove capítulos apresentados em fita cassete, chamada "The Balanchine Essays", com comentários de Suki Schoerer e Merrill Ashley atuando como principal demonstrador. A direção é de Merrill Brockway, que trabalhou tão produtivamente com Balanchine nos programas de televisão "Dance in America".
A porta e o suspiro
Durante a Balanchine Celebration, Jerome Robbins passou em público um vídeo caseiro que fizera com Balanchine no início dos anos 70, quando ensaiava John Clifford em "Variations pour une porte et un soupir" (variações para uma porta e um suspiro).
Clifford dançou com Karin von Aroldingen, que, numa capa de seda preta ondulante que preenchia a largura inteira do palco, fazia a porta. Clifford, rastejando a seus pés, fazia o frustrado "soupir", o suspiro. Boa parte do filme mostra a tentativa de Balanchine de ensinar Clifford como rolar devagar e ao mesmo tempo aproximar o joelho do peito. Balanchine esticou-se no chão do estúdio para fazer uma demonstração. Clifford não conseguia imitá-lo.
Para ver o que Balanchine estava fazendo, Clifford teve que levantar-se e adotar o ângulo de visão do câmera. Ele teve que retirar-se da ação para poder compreender a imagem. Este é um dos aspectos paradoxais da dança: não se pode dançar e assistir a dança com atenção, ao mesmo tempo. A maioria dos dançarinos aprende observando. Balanchine aceitou a necessidade que Clifford sentia de afastar-se para observar, mas o filme sugere que ele esperava que Clifford conseguisse coordenar a sequência, permanecendo no chão e prestando atenção a seus próprios sinais internos.
Clifford fez o melhor que pode e acabou aproximando-se da ilustração feita por Balanchine. Ele passou no teste, mas não conseguiu aprofundar-se no papel. Como sei disso? Porque os maiores dançarinos de Balanchine têm falado sobre o significado de se dançar para ele, e colocado suas idéias em prática. Merrill Ashley, em especial No palco, ela é um exemplo vivo do brilho que emerge quando se trabalha ao máximo para reproduzir em detalhes os ensinamentos de Balanchine em sala de aula. Mas Ashley, uma das mais meticulosas observadoras de Balanchine nesse nível exotérico, reconhece que existe outro nível, mais esotérico. O nível mais profundo é representado pela dança de Suzanne Farrell.
Ashley ingressou no City Ballet em 1966, no auge da obsessão de Balanchine por Farrell como dançarina e mulher. Aos olhos de Ashley, que tinha 16 anos na época, Farrell era um enigma. Ela era sem dúvida alguma o centro da atenção de Balanchine –às vezes o foco exclusivo de sua atenção, para a raiva e tristeza dos outros dançarinos– e Ashley queria entender porquê. Pois Farrell parecia desobedecer Balanchine. Ela era surpreendente, mesmo porque não reproduzia suas instruções fielmente.
O prazer de Farrell em ser a dançarina de Balanchine era fruto de seu papel como agente de negação na vida de Balanchine. Balanchine queria dormir com ela, casar-se com ela; ele disse a ela que queria um filho. Farrell resistiu. Na época em que Balanchine expressou esses desejos, ele próprio era casado; Farrell casou-se pouco depois com outro dançarino. Para Farrell, a lógica na qual estava trancada ditava que, se ela e Balanchine vivessem concretamente as fantasias do palco e do estúdio, isso envenenaria a própria fonte que possibilitava a existência dessas fantasias. A fantasia não conseguiria sobreviver à vida conjugal.
Quando Balanchine morreu, em 1983, sua companhia continuou dançando, e sua escola também (no próprio dia de sua morte houve espetáculos do City Ballet e do S.A.B. Workshop). E dançando magnificamente. Foi a última e maior homenagem que os dançarinos puderam lhe render: prosseguir trabalhando como normalmente.
O fim da bailarina
Alguns críticos temem que a era da bailarina, até mesmo a era do próprio balé, tenha terminado para sempre. Estes temores são prematuros. Às vezes as pessoas nos surpreendem, e às vezes nos surpreendem agradavelmente. A School of American Ballet continua produzindo promissoras candidatas a bailarinas em produções de alto nível dos balés de Balanchine.
Francia Russell e Kent Stowell, do Pacific Northwest Ballet, Edward Villella do Miami City Ballet e Patricia Wilde, do Pittsburgh City Ballet, mantêm repertórios limitados de Balanchine, mas quando os apresentam não parecem estar presos ao peso do passado. Eles encaram as obras de Balanchine como uma oportunidade, uma maneira de oferecer seus cartões de visita de excelência numa época em que novos trabalhos precisam ser encorajados para manter suas companhias em constante renovação. No espírito do comentário de Balanchine sobre o "caos organizado", não se pode assistir hoje a um "Rubies" melhor do que aquele levado recentemente pelo Miami City Ballet à State University of New York em Purchase, sob condições abismais (por padrões nova-iorquinos): um teatro situado em local fora-de-mão, com música gravada, sem dançarinos famosos. O que Villella fez para dar forma correta a este balé?
Ele disse que sua companhia havia discutido vários níveis do balé com os dançarinos. Aparentemente é isso que Russell também faz.
Estes balés possuem uma dimensão que enquanto Balanchine estava vivo, era implícita. Mas agora, em sua ausência, ela precisa ser transmitida. Sem dúvida os dançarinos principais mais jovens, que nunca trabalharam pessoalmente com Balanchine, precisam compreendê-la. É importante para os homens mas é crucial para as mulheres, que são as curadoras centrais desse repertório.
Esse conhecimento, que pode ser transmitido por professoras e pelas bailarinas mais velhas, não vai assegurar o surgimento de estrelas. As estrelas nascem assim. Mas pode manter os balés em condições que possibilitem que uma estrela brilhe realmente, e manteria a visão clara para as pessoas cujo trabalho consiste em identificar e encontrar os dançarinos que são a matéria prima de estrelas.
A arte e a direção artística não são democráticas. O diretor de uma instituição artística corre o risco de ser visto como tirano por aqueles que não são favorecidos ou que não estão contentes, e às vezes ele (ou ela) precisa ser tirano para conseguir que o impossível esteja pronto para aparecer no palco, quando a cortina se erguer.
Mas nenhuma apresentação de balé por si só constitui um resumo duradouro de uma obra toda, ou dos dons de um dançarino. Balanchine sabia disso, muito bem. Só se pode fazer um certo tanto numa única noite. Amanhã se fará mais. Uma parte importante dos ensinamentos de Balanchine foi que existem limites para a tirania, até mesmo para a tirania de um mestre.
Tradução de Clara Allain

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