São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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A armadilha do corredor verde

JOHN BONNER
DA "NEW SCIENTIST"

Corredor verde ou armadilha?
'Ponte' entre reservas ecológicas precisa ser testada
Animais podem levar através de corredores novos genes a populações
Uma solução é capturar animais e soltá-los em outras áreas
A preocupação crescente com a redução do número de espécies animais e vegetais desencadeia uma caça a métodos capazes de salvá-los. Nos últimos dez anos, a idéia de manter corredores de vida selvagem –faixas de terra que conectem áreas remanescentes de habitat selvagem– tornou-se popular entre os conservacionistas.
A idéia é fácil de compreender e tem um apelo óbvio, intuitivo. Entre os projetos mais ambiciosos, alguns ultrapassam fronteiras nacionais: existe, por exemplo, um corredor ligando as imensas reservas de caça de Masai Mara, no Quênia, e a região de Serengeti, através da fronteira da Tanzânia. Na outra ponta da escala estão os projetos modestos que utilizam linhas ferroviárias abandonadas para unir lotes baldios nos centros urbanos, trazendo um gosto de campo aos habitantes das cidades.
A idéia incendiou a imaginação dos ambientalistas. Espera-se que os corredores de vida selvagem permitam que plantas e animais colonizem novas áreas, ou levem sangue novo e extremamente necessário a pequenas populações ameaçadas pelo endocruzamento (cruzamento entre indivíduos com alto grau de parentesco).
Como resultado disso, os corredores estão sendo saudados por alguns grupos conservacionistas, especialmente nos Estados Unidos, como salvadores potenciais de muitos animais.
Mas nem todos os cientistas compartilham desse entusiasmo. Faltam evidências derivadas de observação que mostrem que os corredores realmente funcionam, diz Daniel Simberloff, professor de biologia da Universidade Estadual da Flórida, em Tallahassee, que acredita que o conceito foi "vendido" além da conta. Os custos envolvidos na criação corredores de vida selvagem são imensos e podem ultrapassar seus benefícios, diz ele.
A maioria dos projetos em funcionamento hoje foi planejada considerando espécies individuais, mas os defensores dos corredores de vida selvagem dizem que eles podem preservar comunidades ecológicas. O temor de que o rápido aquecimento global possa superar a capacidade das espécies de se adaptar a condições mutantes fez surgir propostas de criação de corredores que, em caso de mudança de condições, permitam a migração dos animais. Já existe um plano para a criação de um corredor de "mudança global" de 300 metros de largura e milhares de quilômetros, que cortaria a América do Norte.
Mesmo que fosse possível comprar essa quantidade de terra, os críticos mostram-se céticos quanto a seus resultados. Uma faixa tão estreita seria inútil para espécies que só conseguem se dispersar lentamente, diz Simberloff. "No caso de um corredor planejado para preservar uma comunidade inteira, é importante que ele seja suficientemente largo para permitir a procriação, além do trânsito."
Simberloff acredita que alguns corredores estão sendo criados por razões menos nobres, particularmente nas florestas do noroeste dos Estados Unidos. "Já lidei com madeireiras e incorporadores em quantidade suficiente para identificar um padrão", diz ele. "Eles oferecem corredores estreitíssimos de valor duvidoso, dizendo que, segundo a biologia conservacionista, eles preservarão a biodiversidade. Então, partem para destruir extensões de terra muito maiores."
Teoria
Os biólogos começaram a investigar a teoria dos corredores de vida selvagem na metade da década de 70. Em um livro publicado em 1975, "Ecology and Evolution of Communities" ("Ecologia e Evolução de Comunidades"), o zoólogo Edward Wilson, da Universidade Harvard, escrevia que os corredores seriam uma proteção contra a extinção.
A idéia dos corredores de vida selvagem foi adotada no início dos anos 80 e promovida por influentes organizações conservacionistas internacionais.
Em dezembro de 1991, um relatório do Instituto de Política Ambiental Européia, uma organização de pesquisa financiada pela Comunidade Européia, argumentava que os "corredores ecológicos" seriam característica essencial de uma rede de ligação entre reservas naturais européias. Simberloff destaca o documento europeu como "uma obra-prima do pensamento acrítico e da generalização fácil".
Críticos dizem também que modelos matemáticos ainda precisam ser testados na prática, e que são deficientes as evidências que, aparentemente, mostram que mamíferos e aves utilizam os corredores.
Simberloff não é o único cientista cético quanto aos corredores. David Dawson, da London Ecology Unit, acaba de publicar um relatório feito sobre o assunto para a English Nature, um dos principais órgãos de consultoria ambiental ao governo britânico. Ele conclui que as evidências existentes só indicam movimento entre retalhos próximos a áreas agrícolas.
Uma investigação bastante citada consta de um estudo de Gray Merriam e seus colegas da Universidade Carletom, em Ottawa. Trabalhando no leste do Canadá, nos anos 80, eles deliberadamente removeram ratos silvestres e certo tipo de esquilos de trechos de um bosque. A seguir, estudaram o movimento dos animais ao longo das sebes que ligavam aqueles trechos.
Os pesquisadores descobriram que as sebes ajudavam estas espécies a recolonizar a mata. Os cientistas, entretanto, não aceitam essa evidência como justificativa para a maioria dos corredores existentes, que foram criados principalmente para proteger espécies muito maiores, como ursos e grandes felinos. Os territórios desses animais podem avançar por muitos quilômetros quadrados. Até agora, ninguém provou que os corredores podem funcionar em tal escala, diz Dawson.
Tentativas de provar o valor dos corredores de vida selvagem enfrentam problemas conceituais, dizem seus críticos. Um deles é o fato de que a largura das faixas de terra em questão varia de poucos metros a vários quilômetros. O corredor Grider Creek, que liga duas áreas de floresta selvagem no extremo norte da Califórnia e no sul do Oregon, tem 5,5 quilômetros de largura e 26 quilômetros de comprimento.
É provável que tais corredores funcionem muito melhor que os mais estreitos, diz Simberloff. Eles fornecem um habitat real, não meras rotas de deslocamento. E, em uma faixa, é possível que nenhum lugar seja suficientemente distante da margem para ficar isolado do ambiente em volta do corredor. As plantas que florescem nos terrenos agrícolas das cercanias, por exemplo, podem invadir o corredor e prejudicar o equilíbrio ecológico; algumas espécies, como os pássaros da floresta, podem ser vulneráveis a ataques de predadores como falcões e corvos. Nas margens dos corredores, as plantas típicas de floresta podem sofrer com a exposição a luz, umidade ou vento excessivos.
Um argumento muito citado na defesa dos corredores de vida selvagem é a idéia de que a vitalidade genética de populações isoladas melhora com a migração de animais do exterior. O argumento-padrão é o de que o acasalamento entre parentes próximos resulta na manutenção de características genéticas desfavoráveis que, em uma população maior, seriam eliminadas através de mistura genética. Mas esse quadro nem sempre corresponde à realidade, diz Simberloff. Espécies como o bisão europeu (Bison bonasus) e o cervo de David (Elaphurus davidianus) não apresentam tais problemas, mesmo tendo sido resgatados do ponto de quase extinção e tendo hoje alta consanguinidade. Os guepardos africanos são extremamente uniformes do ponto de vista genético –possivelmente por terem chegado muito perto da extinção, no passado distante–, mas não parecem sofrer com isso. Populações pequenas não estão necessariamente condenadas à extinção, diz Simberloff. Pesquisadores que monitoravam os falcões de cauda vermelha na ilha de Socorro, no Pacífico, descobriram que as aves sobreviviam há décadas com uma população estável de cerca de 20 casais. Não há razão para supor que essa população algum dia tenha sido maior, dizem eles.
Se o endocruzamento passa a ser problema, uma solução é capturar alguns indivíduos do exterior e libertá-los na área isolada, diz Simberloff. A transferência de ovos de pássaros de uma população para outra foi tentada com sucesso em muitas espécies, diz ele.
Alguns entusiasmam-se menos com essa opção. Reed Noss, pesquisador associado do Centro de Biologia Conservacionista da Universidade Stanford, questiona a ética do "despacho de animais em caixotes". Também adverte que a captura e o transporte de indivíduos seria impraticável, exceto no caso de algumas poucas espécies. Críticos do transporte destacam ainda que o método é incapaz de conservar comunidades inteiras de plantas e animais, servindo apenas no caso de espécies individuais.
Outra armadilha, que em princípio se aplicaria também aos corredores de vida selvagem, é o problema da diluição genética –a possibilidade de que a mistura de populações provoque a perda de características locais úteis. Noss, porém, não acha que este seja um inconveniente real, no caso dos corredores. "Manter ou restaurar a capacidade de conexão natural entre paisagens nunca se mostrou causa disso em populações selvagens", afirma.
Também preocupa a possibilidade de que os corredores se transformem em rotas de transmissão de doenças. O risco pode ser ainda maior se o corredor conectar pequenas e apinhadas populações de animais e plantas, adverte George Hess, da Universidade Estadual da Carolina do Norte. Este efeito pode ser observado quando os animais são amontoados em reservas de caça.
Os corredores de vida selvagem também podem agir como condutores de fogo, de espécies predadoras e de plantas capazes de comprometer as comunidades naturais.
Simberloff acha que, com recursos tão escassos como os que costumam ser destinados a programas conservacionistas, cada projeto de corredor deve passar por uma análise de custo-benefício. O problema é que as informações capazes de demonstrar o valor de um projeto de corredor raramente são disponíveis, se é que são.
Os biólogos conservacionistas devem trabalhar para tornar essa análise possível, diz Dawson. Enquanto isso não acontece, ele diz que os cientistas precisam adotar o princípio da cautela e admitir que os corredores existentes podem ser importantes.

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