São Paulo, domingo, 4 de setembro de 1994
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Sarajevo, onde começa e termina o século 20

SALMAN RUSHDIE

Apesar de alguns indícios de que as coisas talvez estejam melhorando, ainda é muito, muito difícil fazer qualquer espécie de afirmativa sobre a situação atual na Bósnia-Herzegóvina.
É possível ler que foi a ameaça de ataques aéreos que levou os sérvios a retirarem sua artilharia das posições em volta de Sarajevo, que foram os russos que os convenceram, que na realidade os sérvios reposicionaram seus tanques em áreas civis onde ataques aéreos contra eles se tornam impossíveis e de onde podem atacar Sarajevo, que os russos e os gregos estão apoiando a Otan, que os russos e gregos estão se colocando ao lado de seus aliados ortodoxos, os sérvios, que agora os croatas sob a liderança de Tudjman estão dispostos a formar uma federação com os "muçulmanos", que isto pode formar a base para um acordo com os sérvios para preservar alguma espécie de Estado unificado da Bósnia, que a partilha em três Estados é inevitável, que preto é branco, sim é não, para cima é para baixo, avançar é retroceder e que só nos resta nos juntarmos aos velhos loucos da "Ballad of the Shrieking Man" (Balada do Homem que Grita), de James Fenton, e cantar:
Os andarilhos são loucos/ E a verdade é louca/ E também o são as árvores e os troncos e os caminhos./ Os mapas do horror são verdadeiros./ A lua do horror que corta as nuvens/ A arma/ O bandido/ Os sacos de juta/ Os coletes roxos dos faladores à toa/ Fizeram sua parte, como você pode ver/ Para extrair a loucura de nossa sanidade.
Mas assim não dá: Não se pode decidir que lá na Bósnia eles vêm se odiando há milênios e que agora os demônios saíram da garrafa e deixemos que façam o que quiserem. É igualmente insatisfatória a versão de que "a situação é complexa" e "não existem respostas fáceis".
Nada disto serve porque ainda existe algo chamado verdade. E a verdade, para mim, consiste no significado de Sarajevo, onde, como disse Susan Sontag, o século 20 começou e onde, numa simetria aterradora, está terminando.
Nunca estive na cidade, mas tenho orgulho de ser membro honorário do PEN Clube de escritores ex-iugoslavos. Por causa deste vínculo recém-forjado eu, também, posso me afirmar em certo sentido um exilado de Sarajevo.
Existe uma Sarajevo cuja desgraça faz de todos exilados. Uma cidade na qual os valores do pluralismo, da tolerância e da coexistência criaram uma cultura única. Nessa Sarajevo existe de fato aquele islamismo secular pelo qual muitas pessoas lutam, em outras partes do mundo. Seus habitantes não se definem por sua fé ou tribo, mas simplesmente como cidadãos.
A verdade de Sarajevo é que as diferentes comunidades não vêm se odiando desde sempre, mas que têm sido bons vizinhos, colegas de escola, colegas de trabalho e amantes. E quando houve conflitos, isso aconteceu pelos motivos humanos de personalidade e afinidade, não por causa dos males do nacionalismo.
A verdade de Sarajevo é que a cidade tem sido palco de uma guerra de agressão movida pelos sérvios; que se os sérvios pararem seus bombardeios, será porque já tomaram "sua" parte, impondo à força uma partilha de fato do que deveria ter permanecido unido; e que o mundo externo parece estar decidido a impor a esta cidade híbrida a "lógica", a "realidade", das diferenças étnicas e de se deixar para o agressor os espólios da guerra.
A verdade de Sarajevo é que seus cidadãos, que rejeitam sua definição por religião ou credo, que desejam ser simplesmente bósnios, foram rotulados pelo mundo externo de "muçulmanos". É instrutivo imaginar como as coisas poderiam haver se encaminhado se os bósnios tivessem sido cristãos e os sérvios muçulmanos, mesmo que fossem muçulmanos "de nome apenas". Teria a Europa apoiado uma partilha "sérvia muçulmana" do Estado defunto? Meu palpite é que não. Isto sendo verdade, deve também ser verdade que o rótulo de "muçulmanos" é parte da razão da indiferença da Europa em relação ao destino de Sarajevo.
Ainda não fui a Sarajevo, mas conheci recentemente três de seus muitos cidadãos extraordinários: Zdravko Grebo, da rádio que é sua voz e consciência, a Rádio Zid; Haris Pasovic, que promoveu o Festival de Cinema de Sarajevo no ano passado –e que realização esta, promover um festival de mais de cem filmes em meio a uma guerra!–, e Kemal Kurspahic, editor do combativo jornal "Oslobodjenje", de Sarajevo.
Eles me ensinaram mais uma verdade básica: definir os habitantes da Sarajevo sitiada simplesmente como seres com carência de gêneros de primeira necessidade seria impor a eles uma segunda privação. Quando os oficiais da ONU limitam o número de cartas pessoais que podem entrar ou sair da cidade; quando se recusa a permissão para artistas visitarem a cidade e quando porta-vozes de governos ocidentais alegam que a cultura constitui um luxo em tempos de guerra, o crime que cometem é a negação da condição humana de Sarajevo.
Um ensaio recente escrito por Zlatko Dizdarevic, colega de Kurspahic no "Oslobodjenje", expressa o estado de ânimo atual da cidade. "Até seis ou sete meses atrás, todo verdadeiro habitante de Sarajevo precisava de pelo menos uma hora para caminhar do Holiday Inn até a catedral. Parava-se para cumprimentar pessoas, para perguntar por todos. Hoje essa mesma distância leva apenas 15 minutos, porque ninguém pára. Ninguém tem mais nada a perguntar a ninguém".
Ele conta sobre um garoto cujo pai foi morto e que hoje diz: "Ontem sonhei com meu pai. Sonhei com ele de propósito". "Um dia", avisa Dizdarevic, "alguém vai ter que se precaver contra garotos de Sarajevo que sonham com seus pais assassinados de propósito".
Será que os "muçulmanos" seculares de hoje se transformarão nos fundamentalistas vingativos de amanhã, sonhando de propósito com os mortos? Até agora, ao que tudo indica, o islamismo de linha-dura avançou pouco na cidade –mas apenas até agora. Poderá Sarajevo ser salva? Sarajevo mal acredita que sim.
Acabo de assistir a um estranho curta-metragem em que um homem, descendo as ruas cheias de franco-atiradores de Sarajevo, repete meu nome incessantemente, como um mantra. "Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie, Salman Rushdie". Será que o repete para manter em mente o perigo em que se encontra, ou como uma espécie de feitiço para mantê-lo a salvo? Espero que seja este último e é no espírito da magia benéfica e solidária que comecei a murmurar, baixinho, o nome desta cidade desconhecida da qual me declaro cidadão imaginário:
Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo. Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo, Sarajevo.

Tradução de Clara Allain

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