São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Imprevisibilidade é inimiga do crescimento

EDUARDO GIANNETTI DA FONSECA
ESPECIAL PARA A FOLHA

As deliberações pertencem a duas categorias básicas –as decisões de ordem tática, que têm o curto prazo como horizonte e visam fins mais imediatos e as decisões estratégicas.
Fumar um cigarro e comer um doce são decisões táticas; parar de fumar e fazer regime são estratégicas. Estudar (ou não) para a prova de amanhã é uma decisão tática; fazer um curso técnico ou superior é parte de um plano de vida. O flerte é tático; o casamento, estratégico.
As decisões estratégicas, assim como as táticas, são tomadas no presente. A diferença é que elas têm o longo prazo como horizonte e visam a realização de objetivos mais remotos e permanentes.
"O homem", observou Paul Valéry, "é o herdeiro e refém do tempo –o animal cuja principal morada está no passado ou no futuro". Foi essa capacidade de reter o passado e de agir no presente tendo em vista o futuro que nos tirou da condição de bestas sadias e errantes.
A tensão entre o tático e o estratégico é uma constante no processo decisório. O ideal seria conseguir agir no dia-a-dia sem sacrificar demais o futuro, mas também sem ceder demais ao presente.
O problema, contudo, é que muitas vezes implementar decisões estratégicas exige abrir mão de interesses táticos e prementes. Pior: uma sequência de decisões táticas, cada uma delas isoladamente válida e sensata, pode levar a um resultado estratégico ruim.
Um bom exemplo, no campo da microeconomia, da tensão entre o tático e o estratégico, é a decisão de investir. Quando o mercado é favorável, é fácil para uma empresa aumentar a produção reduzindo a capacidade ociosa, acelerando o ritmo da produção ou fazendo um turno extra.
Esta é uma decisão tática, de curto prazo e que pode ser facilmente revertida, sem grande ônus, no momento em que a maré virar ou a demanda refluir.
Coisa muito distinta é a decisão de aumentar a oferta investindo na formação de capital fixo e na criação de capacidade produtiva –a instalação de uma nova planta, a aquisição de máquinas e equipamentos, a formação de mão-de-obra especializada, etc.
Investir é uma decisão estratégica. Ao fazer isso, a empresa está apostando no futuro e assumindo um compromisso do qual ela não poderá sair tão cedo sem incorrer em pesadas perdas.
No curto prazo, o crescimento econômico pode resultar de um processo decisório tático que leve a um uso mais racional e intensivo da capacidade produtiva já existente.
Foi o que ocorreu na fase "inflação suíça e crescimento japonês" do Plano Cruzado e é o que vem ocorrendo nos últimos meses. Mas isso não passa de um flerte com o crescimento –delicioso, talvez, enquanto dure, mas inevitavelmente limitado, fugaz e infecundo.
O casamento duradouro com o crescimento –sua retomada em bases genuínas e sustentáveis– depende da ampliação e modernização da capacidade produtiva da economia.
Isso, no entanto, é algo que só voltará a acontecer no Brasil no momento em que as empresas e demais investidores potenciais –internos e externos– passarem a se sentir suficientemente seguros para tomar decisões estratégicas de investir e assumir riscos de longo prazo.
A grande questão é: que fatores inibem –e quais favorecem– a tomada de decisões difíceis e ousadas como a de investir na criação de capacidade? O que leva à formação de expectativas conducentes ao investimento privado? Existe alguma coisa que o governo pode fazer para convencer os tomadores de decisão a rever suas escolhas, trocar o flerte pelo casamento e abandonar a relutância em apostar no futuro?
Perguntas como estas fazem lembrar aquela anedota de que toda vez que dois economistas debatem, pelo menos três opiniões vêm à baila... duas das quais são de Keynes. O território é um dos mais escorregadios da teoria econômica –o próprio Keynes chegou a invocar a existência de "animal spirits" para "explicar" a decisão de investir...
Uma coisa, no entanto, parece clara. A incerteza não ajuda. A imprevisibilidade em áreas como taxa de câmbio, sistema tributário e tarifas de importação –a expectativa de que esses parâmetros podem variar de forma abrupta no futuro, em função dos alvos táticos e do casuísmo dos governantes é tremendamente nociva à formação de um ambiente favorável a novos investimentos.
Numa economia de mercado, um elemento crucial para que a disposição de investir se fortaleça é a confiança, por parte de cada indivíduo e de cada empresa, de que o resultado final de seus investimentos e esforços produtivos será avaliado e remunerado de forma independente, de acordo com o desejo dos consumidores em pagar por eles.
O problema é que se esse vínculo entre investimento, avaliação e remuneração se torna irregular e incerto, ou seja, fica mais à mercê do ativismo do governo em áreas como política cambial, tributária e tarifária do que de qualquer outra coisa, as empresas não só perdem a confiança de que poderão colher mais à frente o que decidirem investir hoje, como passam a orientar suas ações para flertes especulativos de curto prazo.
Os efeitos dessa quebra de confiança que inibe os investimentos foram bem apontados por David Ricardo: "A quantidade de emprego num país depende não apenas da quantidade de capital, mas da sua distribuição vantajosa e, sobretudo, da convicção de cada capitalista de que lhe será permitido usufruir, sem ser molestado, dos frutos do seu capital, habilidade e capacidade empreendedora. Retirar dele tal convicção é aniquilar de uma só vez metade da indústria produtiva da nação e seria mais fatal para o trabalhador pobre do que para o próprio capitalista rico".
O Brasil, é verdade, precisa mudar muita coisa. Precisa liberalizar o mercado de câmbio, desregulamentando a demanda e a movimentação de moeda estrangeira; precisa simplificar o sistema tributário, diminuindo o número de impostos, ampliando a base e desonerando a atividade produtiva; e precisa reduzir o protecionismo, baixando as tarifas e submetendo a indústria à ação disciplinadora da concorrência externa.
Mas ainda mais importante que tudo isso, para viabilizar novos investimentos, é a conquista de uma constituição econômica –um arcabouço estável de regras– que reduza a incerteza e coíba o ativismo macroeconômico do governo. O grau de imprevisibilidade da nossa economia é letal para as decisões estratégicas e a retomada do crescimento.

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