São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Rosset sacode o pó de Shakespeare

O diretor defende o apelo popular do dramaturgo elizabetano

MARIO VITOR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

O diretor Cacá Rosset acredita que só há um único pecado capital no teatro: a chatice. Diz que os clássicos, especialmente as peças de Shakespeare, são terreno fértil para o teatro morto, o tédio que nenhuma grande idéia justifica. Ele acaba de renovar contrato para que sua adaptação da "Comédia dos Erros", do próprio Shakespeare, com o grupo Ornitorrinco, prolongue a temporada no teatro Faap, em São Paulo, até junho do do ano que vem.
O espetáculo é um fenômeno comercial: tem a segunda maior bilheteria da cidade, atrás apenas da comédia de costumes "Trair e Coçar é Só Começar". Rosset quer que o teatro clássico se livre do pó dos séculos, mas diz que a banalização é um perigo em países sem tradição cultural.
Cacá Rosset –Eu tenho uma preocupação de fidelidade, mas através de uma via da infidelidade. Os clássicos em geral, mas sobretudo Shakespeare, vão sendo fossilizados ao longo dos séculos. Existe em Shakespeare e em outros clássicos uma certa tradição "artística" que vai sendo acoplada à obra a um ponto que as pessoas não conseguem mais distinguir o que é essa tradição e o que é realmente a essência da obra. É como se você tivesse uma mesa se vá acumulando o pó dos séculos.
A uma certa altura você já não distingue o que é mesa e o que é pó. O trabalho de voltar à essência dessas obras é muito mais o trabalho de tirar o pó que se misturou com essa mesa do que propriamente encontrar }approaches' extremamente inteligentes, visionários, inusitados. Cada época lê o Shakespeare à sua maneira. O Shakespeare montado no século 16 é diferente do montado no século 17 e assim sucessivamente. Certos aspectos da obra vão sendo colocados em primeiro plano dependendo da sensibilidade, da cultura e do local. A obra de Shakespeare é generosa, permite essas releituras.
O Shakespeare feito pelos românticos é muito diferente do que o Shakespeare feito no século 20, de todas as idéias mais recentes do Jan Kott, autor de "Shakespeare: Nosso Contemporâneo" que é uma bíblia do Shakespeare no século 20 (o crítico polonês Jan Kott considera Shakespeare um dramaturgo do absurdo e do grotesco. Kott inspirou trabalhos que expõem os valores tradicionais a uma visão cética e ridícula) e que influenciou muito os trabalhos de Peter Brook. O que eu tenho horror é da ditadura dos doutores em Shakespeare. Nenhum outro autor tem tantos }donos da obra.
Folha –A questão da tradição não é um desafio para quem quer montar Shakespeare de maneira verdadeira e eficiente em termos dramáticos?
Rosset – Eu acho que há uma certa fossilização da obra de Shakespeare que o coloca intocável e que no fundo é uma celebração da chatice. Os clássicos são solo muito fértil para o teatro morto. Eu já vi espetáculos insuportáveis do Shakespeare fora do Brasil. Quase como se houvesse um acordo tácito entre atores e espectadores: durante três horas nós vamos nos aborrecer, mas é uma coisa culturalmente importante. Isso dá uma satisfação a ambas as partes.
E o Shakespeare não é isso. Na sua época ele foi um autor verdadeiramente popular. O teatro dele se comunicou com um espectro diversificado. Era desfrutado pela nobreza e por bêbados, carroceiros. A própria arquitetura do teatro elizabetano, em "U", é de um teatro que foi criado em fundo de tabernas, os prólogos imensos, lindos, às vezes longos, mais do que qualquer veleidade poética, tinham mais uma função de calar a boca de um público ruidoso.
O público elizabetano é um público malcomportado, que bebia, que mandava os atores à puta-que-o-pariu. Até porque é um teatro na época totalmente antiilusionista. Feito à luz do dia, às três da tarde, praticamente sem cenário. Não havia atrizes, os personagens femininos, Julieta, Desdêmona, Lady Macbeth, eram interpretados por homens. Era um teatro extremamente poderoso, que conseguia comunicação com essa platéia heterogênea.
Se você verificar na história do teatro, os grandes momentos foram aqueles em que ele conseguiu romper um certo gueto para se comunicar com um espectro mais amplo da sociedade, que vai além de uma classe social ou idade. Isso aconteceu na Grécia, no teatro elizabetano, na Commedia dell'Arte, num certo sentido com Molière. A obra do Shakespeare, qualquer peça, qualquer imbecil entende, qualquer cretino entende e gosta, com graus de diferença, evidentemente. É um teatro que tem esse poder de se comunicar com qualquer espectador e tem se comunicado ao longo de 400 anos.
Folha –Se no exterior o peso da tradição é maior, no Brasil existe, em contrapartida, um risco de se cair mais facilmente na banalização...
Rosset –É claro, a contrapartida da não-fossilização pode ser um empobrecimento da obra. Na Europa, especialmente na Inglaterra e na Alemanha esse peso é muito presente. Na Inglaterra as pessoas são alfabetizadas lendo Shakespeare, sabem de cor peças. Das 36 peças, já viram cada uma cinco, seis vezes pelo menos, em montagens as mais variadas. As referências do espectador, dos atores e do espectador são totalmente diferentes.
Aqui o Shakespeare não é tão conhecido assim, até porque as traduções são péssimas, com raríssimas exceções. Algumas até são corretas do ponto de vista literário, mas elas não são faláveis, podem até serem razoavelmente lidas e entendidas, mas soam mal na boca do ator. O primeiro problema de tradução é o de que o português é uma língua muito mais prolixa do inglês, na ordem de 30% a mais. O segundo é de que o inglês do Shakespeare é arcaico, hoje em desuso, a própria pronúncia mudou ao longo dos séculos e tem outras coisas que são realmente incompreensíveis, cifradas, criptográficas, especialmente nas tragédias.
Mesmo sem entender inglês, ouvir as peças do Shakespeare é de uma sonoridade extraordinária, ao passo que a maior parte das traduções são meio parnasianas, coisas que não funcionariam na boca do melhor ator do mundo.
Folha –A minha impressão em sua montagem da "Comédia dos Erros" é a de que nas partes em que você tinha que fazer uma opção entre historicizar, politizar, contextualizar ou criar mais uma situação engraçada, você optou sempre pela solução mais histriônica, isso a um ponto em que referências ao texto original beiravam a fluidez.
Rosset –A "Comédia dos Erros" é baseada numa peça do Plauto (comediógrafo latino do século 3 A.D.) chamada "Os Gêmeos". É uma comédia de situação. A graça dela surge muito mais a partir das situações equivocadas do que propriamente de textos ou de 'gags' extremamente engraçadas. O público está sempre uns cinco segundos na frente das personagens.
Depois de um certo tempo, depois que o público decodifica que são dois pares de gêmeos, já se sabe que aquele que entrou com a corda é o errado. Na verdade, ele mandou o outro buscar o dinheiro. A comédia latina original é grossa, rústica, sem meios-tons. Se o público elizabetano era grosso, o público latino era de baixaria total. A "Comédia" é tão atípica que beira a farsa. A farsa, composta de situações improváveis, requer uma aceleração do ritmo que sustente um pouco da verossimilhança.
Se o espectador fosse raciocinar, veria que situação da peça muito improvável. O gêmeo está procurando o outro irmão. Começa a ocorrer uma série de trapalhadas. Ele cogita tudo, inclusive bruxaria, mas ele jamais cogita que ele está na cidade onde está o irmão gêmeo. A farsa funciona mais pela graça da situação do que pela racionalidade rigorosa.
Folha –Logo na cena inicial da "Comédia", o texto original de Shakespeare tem uma riqueza muito grande, que permitiria entradas para um maior aprofundamento dos temas.
Fica-se sabendo que há uma guerra comercial entre Siracusa e Éfeso e que um acidente separa os irmãos gêmeos no mar –qual o sentido do mar?– tudo parece estar concentrado ali no início. Na sua "Comédia dos Erros" isso passa direto, escapa.
Rosset –Essa cena é muito difícil de ser resolvida. Até por ser de uma peça em que o Shakespeare está aprendendo a escrever. Pode ser excessivo o que estou falando, mas essa cena é complicada.
É uma longa cena discursiva, uma história fantástica e que é fundamental para a compreensão da peça, porém é uma cena que dá um tom errado do espetáculo, que não tem absolutamente nada a ver com o que acontece depois e ocorre logo ali, nos cinco minutos iniciais, sem que o espectador tenha nem um tempo fisiológico para se ambientar à ação.
Foi exatamente por isso que eu resolvi colocar, antes disso, o personagem do Shakespeare, que inclusive não aparecia na versão americana, escrevendo "Comédia dos Erros" (sic). A componente trágica presente nas comédias do Shakespeare, nessa peça tem um peso infinitamente menor. É quase uma comédia sobre a esquizofrenia, ou seja, a duplicação e a perda da identidade.

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