São Paulo, domingo, 18 de setembro de 1994
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Montagens hoje se libertam da tradição

MVS
DA REPORTAGEM LOCAL

Montagens hoje se libertam da tradição
O Shakespeare que é representado hoje em dia, num palco com cenário tosco e flexível, ou mesmo, nas produções mais ousadas, sem palco nem cenário, talvez esteja muito mais próximo do original do que se imagina.
Não foi sempre assim. Até recentemente, seguindo tradição já consolidada no século passado, o padrão para as montagens de Shakespeare era estabelecido por Henry Irving, diretor do Lyceum Theater, em Londres, entre 1878 e 1902.
Os cenários para suas produções de Shakespeare eram sempre suntuosos. Como conta David Bevington, em sua edição das "Obras Completas de William Shakespeare", cada produção de Irving era tão cara que tinha que ser uma montagem especial.
Seus cenários eram suntuosos. Assim, mudanças de cenas, que exigiam novos cenários, tornavam o espetáculo tão caro, tomavam tanto dinheiro que as peças originais tinham que ter muitas partes cortadas e remontadas.
A tradiçào prosperou nos primeiros anos deste século. Herbert Tree, diretor do Teatro de Sua Majestade, conseguiu superar Irving no quesito opulência.
Coelhos vivos circulavam no palco da sua produção do "Sonho de Uma Noite de Verão". A montagem de "A Tempestade" mostrava na abertura um imenso navio, assolado por ondas enormes em plena tormenta.
"Antonio e Cleópatra" chegou a mostrar realmente o encontro dos dois no Egito, coisa que obrigava à supressão da bela descrição de Enobarbo, presente no original shakespereano.
A troca de cenários era tão trabalhosa na montagem que Hebert Tree fez de "Macbeth" que o intervalo tomava 45 minutos. A peça, apesar de cortada em um terço demorava quatro horas.
O desafio na montagem de Shakespeare não está mais, há muito tempo como se vê, nem nos diretores autorizados pela coroa inglesa, na preservação "realística" do que se supõe terem sido as intenções do autor.
A verdadeira façanha está em conseguir montar esses textos clássicos de forma a que permaneçam reconhecíveis e que também, principalmente, surjam vivos, em consonância com o esforço do gênio criador de Shakespeare, na complexidade e profundidade dos mitos cujas entranhas ele expôs no final do século 16.
Muitas das adaptações contemporâneas de peças de Shakespeare, até das interpretações inovadoras que se faz da sua obra, são parte de um processo que tenta fazer com que o autor seja parte de nós, se integre ao mundo, permita que nós nos integremos ao dele.
Partem do princípio de que não é possível pensar em um texto "puro". Ele seria ao mesmo tempo inerte. Isso contrariaria o próprio texto.
No limite, busca-se mais uma vez dar algum paradeiro ao ciclone de interpretações inovadoras do mistério shakespereano. Elas saíram de controle há muito tempo, tornaram-se processos autônomos no teatro e na literatura de todos os países.
Antes de serem obras sujeitas a apenas comportadas representações, persistem também, espectros vagando a revelar novas vidas.

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