São Paulo, terça-feira, 20 de setembro de 1994
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Acordo é vitória para militares golpistas

PHIL DAVISON
DO "THE INDEPENDENT", EM PORTO PRÍNCIPE

Rajadas de tiros ecoaram em Porto Príncipe na madrugada de ontem. Temendo o pior –ou esperando o melhor, em termos de imagens–, as equipes de TV americanas acharam que os tiros pretendiam intimidar as tropas dos EUA, cuja chegada era prevista para qualquer momento. Na realidade, eram tiros de festejo.
Na mais recente batalha do confronto, retratado pelos militares do Haiti como um conflito "Davi versus Golias", os poderosos EUA haviam sido humilhados.
Os militares haitianos e os líderes do governo não-eleito não chegaram a dizê-lo, mas o chamado acordo de Porto Príncipe foi visto por seus defensores como uma brilhante vitória tática sobre o poderio norte-americano.
Clinton e os homens que ele começou por dizer que desprezava, mas com os quais negociou depois, podem ter evitado o confronto imediato. Mas o futuro do presidente exilado Jean-Bertrand Aristide não está garantido.
"Vitória"
O presidente haitiano de fato, Emile Jonaissant, fez um discurso ao vivo na TV haitiana, pouco antes da meia-noite, em que qualificou o acordo como uma vitória.
Poucos haitianos estavam assistindo quando a TV voltou a funcionar, após uma longa pausa. "O embargo injustificado será levantado imediatamente", disse ele, embora Clinton não tivesse feito qualquer referência ao bloqueio comercial que pretendia forçar os militares a abrirem mão do poder.
Fazendo sua própria interpretação do acordo, que evidentemente pretendeu evitar a desmoralização das duas partes, Jonaissant disse apenas que "certos oficiais passariam à aposentadoria precoce". Ele elogiou o general Raoul Cedras como um "homem de palavra, um homem de coragem".
Clinton afirmou que o acordo evitou derramamento de sangue desnecessário. Mas representou uma reviravolta total na posição de Clinton, que talvez o prejudique pelo resto de seu mandato.
A resolver
Ele apaziguou seus críticos, talvez tenha satisfeito seus defensores, mas deixou um pequeno problema a resolver: o próprio Haiti.
Os partidários de Aristide viram o acordo como uma resposta de curto prazo de Clinton –visando evitar "a perda de uma única vida americana– que na realidade agrava os problemas do país e o deixam à mercê de mais violência".
Muitos haitianos se perguntavam se as manifestações "montadas", feitas por desempregados analfabetos durante a visita dos enviados norte-americanos (visando evidentemente chamar a atenção da TV dos EUA), teriam influenciado Carter, Powell e Nunn.
Com a capital deserta, os três enviados não puderam testemunhar outros exemplos de sentimento nacional. Quase 70% dos haitianos votaram em Aristide em 1991, mas hoje seus defensores estão silenciosos, por medo do terror imposto pela minoria.
Os tiros de festejo disparados pelos pistoleiros paramilitares imediatamente após a declaração de Clinton mostraram que o regime, descrito pelo próprio presidente 72 horas antes como "o mais brutal do hemisfério ocidental", estava vivo e ativo.
Clinton recuou completamente em relação à sua meta anunciada de fazer os três principais chefes militares do Haiti –a quem havia acusado de cometerem estupros, torturas e violações dos direitos humanos– deixarem o país.
Ironia terrível
Em lugar disso, eles deixarão o poder no dia 15 de outubro. A data, quase certamente escolhida pelos militares, tem um significado irônico e terrível para a maioria dos haitianos que apóiam Aristide.
Ninguém sabe se a ironia passou despercebida a Carter, Powell e Nunn, mas o general Cedras já prometera renunciar exatamente na mesma data, em 1993, sob acordo mediado pela ONU.
Cedras descumpriu esse acordo. Ao que parece, apesar das declarações anteriores de Clinton em tom duro, Carter e seus colegas fizeram o Haiti retornar, em termos diplomáticos, ao início do jogo.
O acordo Carter é essencialmente resultado das preocupações políticas domésticas de Clinton. Desse ponto de vista, para um público que não via a invasão do Haiti com bons olhos, ele pode considerar o acordo um sucesso.
Mas o acerto pouco definido, de colcha de retalhos, alcançado em conversações surreais entre os líderes haitianos "brutais" e os três enviados norte-americanos pode representar, dentro do próprio Haiti, uma receita de desastre.
Os defensores de Aristide ficaram chocados pelo fato de Clinton ter revertido totalmente sua posição no que parecia ser sua exigência-chave: que os três líderes militares abandonassem o Haiti.
Agora eles terão apenas que abandonar o poder, como já haviam prometido. A Casa Branca disse que a saída deles do país deixou de fazer parte do acordo.
Pacto com o demônio
Os partidários haitianos de Aristide, que evitam se manifestar porque os policiais à paisana e os defensores de Cedras (com chapéus de palha, faixas da cabeça e óculos escuros) ainda controlam boa parte do país, estão horrorizados com o acordo.
Segundo eles, o presidente exilado pode encontrar dificuldades para retornar enquanto os generais que o derrubaram permanecerem no país, efetivamente com a proteção e o conluio dos EUA.
"Agora Aristide não tem como voltar", disse Jean-Claude, 28. "Os EUA fizeram um pacto com o demônio, um acordo com os piores inimigos de Aristide, porque acham que o Haiti não vale uma única vida americana. Clinton cometeu um grande erro, fez uma jogada para impressionar os americanos. Mas o tabuleiro de xadrez é o Haiti, todas as peças estão aqui".

Tradução de Clara Allain

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