São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Debate com Castañeda opõe PT e PSDB

FERNANDO DE BARROS E SILVA
DA REPORTAGEM LOCAL

O debate de lançamento do livro "Utopia Desarmada", do cientista político mexicano Jorge Castañeda, realizado na Folha na última quinta-feira, serviu como ocasião para que intelectuais do PT e do PSDB trocassem acusações e fizessem críticas aos seus maiores adversários políticos do momento.
Além de Castañeda, estiveram presentes o cientista político José Augusto Guilhon Albuquerque, eleitor de Fernando Henrique, o coordenador do programa de governo de Lula, Marco Aurélio Garcia, e o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues, que se diz "neutro", evitando misturar sua atividade intelectual com opção político-partidária.
O debate, embora distante das desinteligências que têm sido frequentes entre adeptos ilustres de FHC e Lula, foi um amostra da cisão, provavelmente inédita em seu alcance, que as duas candidaturas estão provocando no meio acadêmico de centro-esquerda no país.
Aproveitando-se do fato de que o livro de Castañeda analisa, historia e discute as trajetórias das esquerdas na América Latina nos últimos 30 anos, Guilhon Albuquerque fez do PT, parte do objeto em discussão, seu alvo preferencial.
Tendo em mãos um texto previamente preparado com o sugestivo título "O Brasil precisa do PT", Guilhon começou dizendo que, se hoje o Brasil precisa mais de FHC, no médio prazo é do PT que o país mais necessita.
A tese de Guilhon é de que o PT, já há alguns anos, vem emprestando racionalidade ao processo político brasileiro.
"Foi a presença do PT como partido competitivo, capaz de disputar e exercer o governo, comprometido com um programa de reformas de amplo apelo popular que obrigou a direita a reciclar sua estratégia, a meu ver com senso cívico raramente demonstrado no passado", disse o peessedebista.
O PT, ainda segundo Guilhon, teria dado nitidez ideológica ao processo político no Brasil, fazendo com que as demais siglas partidárias se posicionassem tendo Lula e aliados como pólo de referência.
Feito o elogio ao adversário, vieram as críticas. Segundo Guilhon, o PT entrou na disputa presidencial deste ano com um "sentimento triunfalista de partido hegemônico, majorotário e único depositário da racionalidade".
Esquecendo-se que é um partido minoritário, incapaz de governar sem costurar alianças com outras forças políticas, o PT, sempre segundo Guilhon, estaria "despolitizando suas bases, sobretudo as religiosas e de movimentos urbanos, dizendo que a disputa eleitoral é entre o bem e o mal, a verdade e a mentira, os justos e os pecadores, os corruptos e os éticos".
Essa postura, na conclusão de Guilhon, estaria jogando o PT numa espécie de "síndrome de Pirro", fazendo com que o partido repita hoje, com consequências mais desastrosas, os mesmos erros já cometidos no 2º turno de 89.
O PT correria o risco de inviabilizar-se como partido competitivo, passando após as eleições, caso seja derrotado, por um processo de esfacelamento interno decorrente da disputa entre as várias correntes que o compõem –o que, obviamente, seria instrumentalizado pela direita em seu benefício.
Marco Aurélio
O cientista político Marco Aurélio Garcia tomou a análise de Guilhon como uma provocação disfarçada em forma de consolo. Como se o adversário peessedebista desse um tapinha no ombro do petista dizendo, antes de se conhecer o resultado das urnas, que ele já perdeu mas, afinal, continua sendo um interlocutor importante.
A resposta veio também em forma de provocação. "Fico contente em saber que o professor Guilhon nos dá boas novas: as ações do PT no mercado atual estão baixas mas no mercado futuro são excelentes", brincou o petista.
"Como sou um investidor imediatista, acho que teremos 2º turno e, com ele, um equacionamento diferente das questões que estão em jogo, sobretudo porque poderemos substituir a discussão sobre a estabilidade pelo debate sobre os projetos de desenvolvimento", disse Marco Aurélio.
Levando a polêmica para a fronteira do adversário, o petista disse achar "estranho" que a social-democracia brasileira (leia-se PSDB), que nunca teve base operária, tenha seguido sua matriz européia apenas na "vocação para aderir às políticas neoliberais".
Mais grave que o esquematismo da esquerda e do PT, concluiu Marco Aurélio, é, diante dos desafios postos hoje para o Brasil e a América Latina, "deslizarmos da esquerda para o centro, sem saber onde isso vai parar, para recompor a velha equação social e política que tantas vezes já fracassou para implementar reformas".
Fim do socialismo
Entrando na discussão deslocado do debate sucessório, Leôncio Martins Rodrigues, depois de elogiar o livro de Castañeda, disse que talvez a principal conclusão do autor seja um paradoxo.
"Para se adaptar à época contemporânea e atingir certos valores que ela mesma defende, a esquerda, se quiser continuar sendo esquerda, deve finalmente se livrar do socialismo", disse Leôncio.
Isso porque, continuou o sociólogo, a tradição socialista nunca aceitou a legitimidade de idéias como o lucro, a democracia burguesa e os interesses empresariais.
A seguir, comentando as dificuldades de Castañeda em situar o PT no interior das organizações de esquerda, Leôncio disse tratar-se de um partido de difícil definição, "que nunca aceitou inteiramente as regras da democracia representativa e pluralista, mas tampouco é um partido revolucionário".
Retomando uma análise que vem repetindo já há alguns anos, Leôncio atribuiu essa impermeabilidade do PT às definições ao fato de ser este um partido de origem híbrida, no qual "convivem mal a igreja progressista, grupos de intelectuais marxistas de origem vária e uma liderança trabalhista".
A meio caminho entre a defesa do basismo e da democracia direta, por um lado, e a aceitação do jogo político-institucional, por outro, o PT, segundo Leôncio, acaba tendo "uma cara interna e outra para o público externo, coisa que se manifesta, por exemplo, nas brigas entre a cúpula do partido e sua bancada parlamentar".
Ao comentar as exposições de seus debatedores, Jorge Castañeda entrou com ressalvas na polêmica brasileira. Admitiu, em primeiro lugar, que as esquerdas hoje estão condenadas ao reformismo, ou seja, devem abandonar a pretensão de construir uma sociedade qualitativamente distinta das atuais, dentro dos marcos do socialismo.
"Se a esquerda quer ganhar uma eleição hoje, é melhor que não tente fazê-lo tentando vender o socialismo, porque assim não ganhará nada. É algo invendável no mercado das idéias", disse Castañeda.
Segundo ele, a "rigidez tática" dos partidos de esquerda, que historicamente têm mostrado uma enorme dificuldade em tentar uma composição com as forças de centro sem se indispor com seu eleitorado de origem, ainda permanece como desafio para que obtenham algum êxito eleitoral.
Além disso, observou o autor de "Utopia Desarmada", a esquerda latino-americana deve reavaliar o impacto que a conquista da estabilidade econômica tem tido sobre a população de diferentes países.
"Todo governo que consegue controlar a inflação na América Latina obtém por isso uma lua-de-mel formidável com a população mais pobre, conforme a experiência tem demonstrado." Na atual circunstância, o recado para o PT não poderia ser mais claro.

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