São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Não é aqui o Haiti

WALTER CENEVIVA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os fuzileiros navais americanos estão, mais uma vez, controlando o Haiti. A semana em que a nação caribenha volta a ser dominada pelas tropas dos Estados Unidos tem um certo significado histórico: foi em 22 de setembro de 1957 que o primeiro dos Duvalier (que passou à história como o "Papa Doc") instaurou a longa ditadura mantida com os "Tonton Macoute", em que todos os direitos humanos foram desrespeitados, mas sem despertarem a sensibilidade estadunidense, pois o ditador era "dos nossos".
Como o atual general não é "dos nossos", a democracia e os direitos humanos passaram a ser relevantes, repetindo operações que, em tempos recentes, atingiram o Panamá e Granada. O cinismo das desculpas oficiais serve para ocultar um fato cuja confirmação se repete a cada crise na área: no Caribe, compreensivelmente, nada acontece (Cuba é a exceção provisória) fora do controle norte-americano.
Há um subproduto também evidente do fato político: o direito internacional público é provido de aspectos farsescos e hipócritas. Trata-se de ficção jurídica, pois a coerção, inerente ao direito verdadeiro, não depende de regras igualitárias, mas do interesse do mais poderoso. Suas normas e seus tratados valem, na medida em que sejam convenientes às nações mais fortes, que os esquecem quando outras conveniências apontem em rumo diverso.
Deve ter sido essa a razão para outro evento da semana. Flexa de Lima, embaixador do Brasil nos Estados Unidos, se viu compelido a escrever a um jornalista de Washington que –em comentário de imprensa– sugeriu que Bill Clinton também mandasse seus fuzileiros para o Brasil, pois aqui, como no Haiti, os direitos humanos são desrespeitados. O embaixador não teria perdido seu precioso tempo se houvesse assumido que "direito internacional" não é direito. Tem útil conjunto de normas sobre as quais repousam muitas das relações entre países. No dia-a-dia das situações, chega a parecer direito. Mas não é.
Tome-se a blague do jornalista que agitou Flexa de Lima. A comunhão de interesses econômicos e estratégicos entre o Brasil e os Estados Unidos é de tal porte que nosso país não tem por que se filiar a toda e qualquer atitude norte-americana. Com muita sensatez, o Brasil tem afirmado posição contrária às intervenções militares. Nem por isso haverá cinismo de superpotência que autorize uma intervenção de porte em nações como a China ou o Brasil, independente de suas forças militares.
Com pouco mais de um décimo da extensão do Estado de São Paulo e perto de 6,8 milhões de habitantes –cerca de 250 por quilômetro quadrado– vivendo substancialmente da agricultura (açúcar, batata e, como óbvio, banana), com 58% de sua força de trabalho atuando no campo, o Haiti tem sofrido sucessivas intervenções navais dos Estados Unidos, como ocorreu, por exemplo, de julho de 1915 a agosto de 1934, para proteger interesses negociais e agrícolas e manter o leque de defesa do Canal do Panamá. Nesse período a população negra foi submetida a tais rigores que, ainda hoje, subsistem velhos ódios, mas a miséria é tanta que o influxo dos dólares (dos pagadores de impostos americanos) pode melhorar as condições gerais.
No caso, a preocupação brasileira não é com a integridade de nosso território, mas com a insuficiência do direito internacional. O poeta Caetano Veloso tem razão: "pense no Haiti, reze pelo Haiti; o Haiti é aqui; o Haiti não é aqui."

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