São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Não é aqui o Haiti
WALTER CENEVIVA
Como o atual general não é "dos nossos", a democracia e os direitos humanos passaram a ser relevantes, repetindo operações que, em tempos recentes, atingiram o Panamá e Granada. O cinismo das desculpas oficiais serve para ocultar um fato cuja confirmação se repete a cada crise na área: no Caribe, compreensivelmente, nada acontece (Cuba é a exceção provisória) fora do controle norte-americano. Há um subproduto também evidente do fato político: o direito internacional público é provido de aspectos farsescos e hipócritas. Trata-se de ficção jurídica, pois a coerção, inerente ao direito verdadeiro, não depende de regras igualitárias, mas do interesse do mais poderoso. Suas normas e seus tratados valem, na medida em que sejam convenientes às nações mais fortes, que os esquecem quando outras conveniências apontem em rumo diverso. Deve ter sido essa a razão para outro evento da semana. Flexa de Lima, embaixador do Brasil nos Estados Unidos, se viu compelido a escrever a um jornalista de Washington que –em comentário de imprensa– sugeriu que Bill Clinton também mandasse seus fuzileiros para o Brasil, pois aqui, como no Haiti, os direitos humanos são desrespeitados. O embaixador não teria perdido seu precioso tempo se houvesse assumido que "direito internacional" não é direito. Tem útil conjunto de normas sobre as quais repousam muitas das relações entre países. No dia-a-dia das situações, chega a parecer direito. Mas não é. Tome-se a blague do jornalista que agitou Flexa de Lima. A comunhão de interesses econômicos e estratégicos entre o Brasil e os Estados Unidos é de tal porte que nosso país não tem por que se filiar a toda e qualquer atitude norte-americana. Com muita sensatez, o Brasil tem afirmado posição contrária às intervenções militares. Nem por isso haverá cinismo de superpotência que autorize uma intervenção de porte em nações como a China ou o Brasil, independente de suas forças militares. Com pouco mais de um décimo da extensão do Estado de São Paulo e perto de 6,8 milhões de habitantes –cerca de 250 por quilômetro quadrado– vivendo substancialmente da agricultura (açúcar, batata e, como óbvio, banana), com 58% de sua força de trabalho atuando no campo, o Haiti tem sofrido sucessivas intervenções navais dos Estados Unidos, como ocorreu, por exemplo, de julho de 1915 a agosto de 1934, para proteger interesses negociais e agrícolas e manter o leque de defesa do Canal do Panamá. Nesse período a população negra foi submetida a tais rigores que, ainda hoje, subsistem velhos ódios, mas a miséria é tanta que o influxo dos dólares (dos pagadores de impostos americanos) pode melhorar as condições gerais. No caso, a preocupação brasileira não é com a integridade de nosso território, mas com a insuficiência do direito internacional. O poeta Caetano Veloso tem razão: "pense no Haiti, reze pelo Haiti; o Haiti é aqui; o Haiti não é aqui." Texto Anterior: Causas Trabalhistas Próximo Texto: Arantes enchem clube para lançar livro Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |