São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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A era dos deuses

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Walter Burkert, professor titular da Universidade de Zurique, é hoje um dos mais renomados estudiosos da antiga religião grega. Pensador inquieto, fez fama, na Europa e nos EUA, com seu polêmico estudo intitulado "Homo Necans" ("O Homem Destruidor"), onde aborda o surgimento da religião a partir de suas origens sangrentas –notadamente o sacrifício humano.
Seu trabalho que acaba de ser traduzido em Portugal –"Religião Grega na Época Clássica e Arcaica"– é já um dos clássicos dos estudos clássicos. Foi lançado em alemão em 1977; uma nova versão, revista e traduzida para o inglês, foi lançada em 1985 (seguida de várias reedições), sendo aclamada pela crítica anglo-saxônica como "a melhor história da religião grega desta geração."
Ao contrário de muitos outros estudos acerca do tema, marcados por uma abordagem impressionística, com forte tendência a discursos verbosos e arriscados vôos da imaginação, o livro de Burkert é de uma sobriedade incomparável.
Não há uma afirmativa sequer que não seja justificada ou comprovada por fontes seguras. A grande erudição do autor, combinada com sua extraordinária capacidade de organização, faz com que este livro seja o ponto de partida obrigatório para qualquer pesquisa cujo tema tenha a ver com a religião grega. Mas o autor faz também numerosas ligações com outras religiões do mundo, e com o fenômeno religioso num sentido mais amplo, o que torna o livro interessante para os estudiosos da religião em geral.
Apesar de seu status de obra de referência, o livro é de leitura extremamente agradável e enriquecedora. Sucintos e completos, os capítulos, organizados em torno de temas do repertório religioso da antiga Grécia, descrevem a devoção aos deuses e o papel a eles atribuído na existência humana –e depois desta– em todos os aspectos. Analisam sua história, seu papel psicológico e social, seu valor filosófico e existencial.
Burkert discute os temas sob várias perspectivas, esclarecendo o leitor ao mesmo tempo em que faz referências e comparações cheias de lucidez, e ricas em idéias e associações de todos os tipos.
Partindo das evidências neolíticas, fornecidas sobretudo pela arqueologia, Burkert traça o surgimento e a cristalização da fé nos deuses olímpicos, e das diversas maneiras de expressão desta fé.
Trata, posteriormente, do surgimento das religiões dos mistérios, fundamentadas nas doutrinas de reencarnação e transmigração das almas, e da crença na sua imortalidade –assunto que estudou mais detidamente em seu "Antigos Cultos de Mistério" (Edusp).
Finalmente, aborda a nova religião filosófica, que surgiria durante o período clássico, pautada por uma nova moralidade e por uma nova maneira de encarar as relações entre o ser e o divino, depois da crise que se abateu sobre a religião dos deuses olímpicos.
Retrata, assim, a trajetória de uma forma de fé religiosa inserida numa fase específica do desenvolvimento humano, facilitando a compreensão que podemos ter, hoje, da arte e da literatura da Grécia.
A tradução para o português lusitano é bastante correta, embora, como sempre acontece nestes casos, coloque alguns tropeços –e também sorrisos– diante do leitor brasileiro. Mais problemática é a injustificada ausência do índice remissivo, que mutila –e muito– a utilidade desta obra monumental.

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