São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Pseudo-história da esquerda brasileira

JACOB GORENDER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Aparentemente, temos em mãos um livro. Ao término da leitura de suas 755 páginas, somos obrigados a indagar se tudo que é impresso e encadernado com a forma de livro merece receber esta denominação.
Um livro contém o texto organizado segundo normas de ordenação e estrutura, conforme o gênero. O texto de "A Revolução Impossível" é uma lengalenga fastidiosa, na qual as informações se atravancam e superpõem através de centenas de páginas, no meio de longos parágrafos atamancados de questões desconectadas, às vezes com duas ou mais versões para o mesmo fato. A conclusão é que a editora Best Seller não publicou um livro, mas um pseudolivro.
Lengalenga
Luís Mir teve a intenção de revelar a vivência oculta da esquerda armada brasileira nas décadas de 60 e 70. A desconchavada lengalenga é percorrida por concepção grosseira retirada da desacreditada teoria conspirativa da história. Os fatores socio-econômicos, políticos e ideológicos em geral, próprios da formação histórica do Brasil e da conjuntura do período da ditadura militar, nem de longe figuram no horizonte de quem serve ao leitor repetidas explicações derivadas de visão historiográfica indigente.
As organizações da esquerda são apresentadas como bandos de carreiristas, delatores, covardes e corruptos. O pretenso historiador assume o ponto de vista dos torturadores do DOI-Codi e do Deops paulista, cujas versões aceita sem sequer uma ressalva.
A fim de evitar dúvidas –apesar do que já escrevi a respeito–, deixo claro, desde logo, que não atribuo virtudes angelicais aos militantes de esquerda da época focalizada e de qualquer época. Após a anistia, quando isto se tornou possível no Brasil, militantes da esquerda trouxeram à luz relatos e análises de suas fraquezas, sem temer expor atos imorais e criminosos. Repugnante é que se submetam vítimas das sevícias nos porões do regime ditatorial à nova tortura de calúnias forjadas pelos algozes e agora difundidas num pseudolivro.
Não se coaduna com a pesquisa historiográfica o que faz Mir: omissão sistemática das fontes, deturpação de declarações de entrevistados ou de documentos, invenção de episódios e de diálogos. Estes últimos pululam em dezenas de páginas e dão a idéia de que o pretenso historiador, desde há mais de 30 anos, contava com dispositivos de gravação ocultos nos gabinetes de políticos em Moscou, Havana, Argel, Pequim, Rio de Janeiro e São Paulo. Seria um orelhão onipresente.
Aos diálogos fictícios se acrescentam as invencionices difamatórias, que atingem sobretudo as pessoas que se negaram a falar ao pseudo-historiador ou se recusaram a fazer o seu jogo provocativo. Sendo difícil aqui citar todos os alvejados pela difamação, menciono os nomes de Bruno Maranhão, Roberto Zaratini, Farid Helou, Dulce Maia, Shizuo Ozawa, José Dirceu, Hélio Bicudo, Takao Amano, Vinicius Caldevilla, Paulo de Tarso Venceslau, Clara Charf e Noé Gertel.
Os dois primeiros da lista acima são dados como os autores do atentado de 25 de julho de 1966 no aeroporto dos Guararapes, no Recife. Atentado cometido por militantes da Ação Popular (AP), conforme assumiu publicamente Jair Ferreira de Sá, um dos dirigentes principais daquela organização. Nem Maranhão, nem Zaratini pertenceram a ela. Uma vez que o enxotou de sua residência, o arquiteto Farid Helou suscitou o rancor mesquinho de Mir.
Por isso, foi "queimado" por ele: teria sido o homem de confiança de Fidel Castro no Brasil e, nesta condição, recebeu, a 4 de novembro de 1966, no aeroporto de Viracopos, nada menos do que Che Guevara, promovendo, no seu apartamento, logo em seguida, um encontro do comandante guerrilheiro com Marighella e Câmara Ferreira. Ora, precisamente naquela data é que Guevara chegou à Bolívia, conforme a cronologia elaborada por Regis Debray. A questão não é somente de data, porque, se é verdade que Guevara passou por São Paulo, nunca se encontrou com Marighella e Câmara Ferreira, de cuja atuação possuía idéia vaga, de acordo ainda com relato de Debray. Todo o episódio se reduz a uma rematada falsidade (*).
Não dispondo do exemplar do "Pravda" e não querendo confiar na memória, dispensei este dado no livro que escrevi sobre a esquerda. Sem lhe acrescentar nada, Mir fez da informação, que lhe transmiti, o ponto de apoio para a narrativa totalmente imaginária dos passos de Prestes na capital russa, enxertada como de costume por diálogos absurdos.
Brother Sam
Façamos, agora, a checagem de uma das pouquíssimas vezes em que uma citação teve a menção completa da data da publicação de que foi extraída. À página 69, lemos a seguinte declaração que Lincoln Gordon, embaixador dos Estados Unidos no Brasil de 1963 a 1967, teria feito na entrevista à revista "Veja" de 17 de novembro de 1971:
"Introduzimos, no Brasil, nos Corpos da Paz, cerca de 40 mil soldados e agentes. Número suficiente para, com o recebimento de armas e suprimentos por via marítima, intervirem militarmente em 48 horas depois de os militares derrubarem Goulart e iniciarem a guerra civil."
Na entrevista de Gordon, concedida ao jornalista Elio Gaspari, não se encontra o trecho citado supostamente "ipsis litteris". Trata-se de enxerto introduzido a fim de dar apoio à versão conspirativa da história. Inserção gritante, porque seria incrível que o experimentado intelectual passasse recibo tão descarado. A certa altura, Gordon se refere à presença, no Brasil, de 40 mil americanos (cidadãos), para os quais a embaixada dos EUA precisaria ter um plano para a retirada de emergência, na hipótese de guerra civil.
Quanto aos Corpos da Paz, a referência é somente à preocupação com as ameaças de Brizola. Em entrevistas posteriores, por motivo da publicação de documentos até então secretos, Gordon confessou ser responsável pela chamada Operação Brother Sam. Pode-se comprovar a ação intervencionista de Gordon, sem recorrer a enxertos falsários.
Mais depressa se pega um mentiroso do que um coxo. Nem por isso, negarei que o pseudolivro contém alguma coisa de verdadeiro, inclusive de novidade factual. O problema é que falsidades tão numerosas destroem a credibilidade e contaminam o que, por ventura, exista de útil do ponto de vista historiográfico.
Assim como se fala em imprensa marrom, para designar jornais e revistas de escândalo e chantagem, também se pode falar em história marrom. Da qual "A Revolução Impossível" constitui exemplo perfeito.
(*) "A Guerrilha do Che", de Régis Debray (Edições Populares, 1980), págs. 75 e 138

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