São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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UTOPIA 2

CAETANO VELOSO

Brasil é brasileiro de rosas
A União, estados de amor:
Floral. sub-espinhos daninhos.
Espinhal: sub-flor e mais flor.
Sousândrade

Nosso povo, "diferentemente dos americanos do norte e de quase todos os europeus, não se identifica com o Estado. Isso pode-se atribuir ao fato geral de que o Estado é uma inconcebível abstração. O Estado é impessoal: nós só concebemos relações pessoais. Por isso, para nós, roubar dinheiros públicos não é um crime. Somos indivíduos, não cidadãos. Aforismas como o de Hegel –Estado é a realidade da idéia moral– nos parecem piadas sinistras."
Essas palavras que acabo de citar podem parecer referir-se a nós, brasileiros. Na verdade, são palavras de uma argumentação sobre o caráter argentino a que Borges recorreu mais de uma vez em seus impecáveis escritos. Se decidi repeti-las aqui foi porque me interessa ressaltar o risco que todos corremos, todos nós que falamos em nome de países perdedores da História, de tomar as mazelas decorrentes do subdesenvolvimento por quase-virtudes idiossincráticas de nossas nacionalidades.
O que nos parece sinistro, isso sim, é o fato de vermos a nossa incapacidade para a cidadania guindada à condição de contrapartida de uma bela vocação individualista, e de aprendermos que nosso desrespeito aos dinheiros públicos nasce de uma quase nobre rejeição dessa inconcebível abstração que é o Estado. No entanto, é uma aproximação desse aspecto difícil do contato com aquele texto que me interessa aqui. Saber em que medida podemos, sem nos iludir, fazer planos para o futuro e sonhar a partir de um aproveitamento de nossa originalidade tomada em sua complexidade desafiadora.
Quero chegar a perguntas de teor semelhantes ao da seguinte: em que medida podemos discriminar o que é, em nós, atraso em relação, por exemplo, às conquistas americanas de direitos dos cidadãos, e o que é vantagem nossa por não termos aquela obsessão, que é uma obcecação, que os americanos têm de considerar passíveis de julgamento público as mais íntimas, nuançadas e sutis ações do âmbito privado.
Não sei a resposta para tal tipo de pergunta, mas seguramente não estou satisfeito com as respostas que se tornaram consensuais. Essas perguntas, esse olhar de perto o pequeno trecho do texto de Borges vem por conta da minha ambição de fazer aqui algo tão fora de moda no nosso finzinho de século finzinho também de milênio, algo tão em desuso e desprestígio que temo que seu mero anúncio soe como uma aberração: falar em tom de profecia utópica.
O desejo de esboçar novas utopias deve nascer em mim menos da necessidade de contrastar com esse ambiente desencantado do que da responsabilidade de compensar minha própria participação na criação do sentimento de desencanto. Refiro-me aqui à minha atuação em música popular desde meados da década de 60 e, sobretudo, às atitudes algo escandalosas e algo superestimadas que, no final daquela década, ganharam o apelido de tropicalismo. Esse movimento, no que diz respeito, teve todas as caraterísticas de uma descida aos infernos.
Para entender isto, é necessário considerar o clima da MPB na época, os desenvolvimentos do samba-jazz, o surgimento da canção engajada e, finalmente, a esdrúxula conjugação dos dois, como uma espécie de otimismo superficial e ingênuo se comparado com a densidade da bossa nova. Claro que é a bossa nova que tem fama de otimista; as canções de protesto, com ou sem convenções rítmicas jazzísticas, é que trouxeram as referências explícitas à miséria e à injustiça social e o tom crítico.
Do ponto de vista dos que fizeram o tropicalismo, ao contrário, a bossa nova de João Gilberto e Antônio Carlos Jobim significava violência, rebelião, revolução e também olhar em profundidade e largueza, sentir com intensidade e coragem, querer com decisão e tudo isso implica enfrentar os horrores da nossa condição: ninguém compõe "Chega de Saudade", ninguém chega àquela batida de violão sem conhecer não apenas os esplendores mas também as misérias da alma humana.
Dor sem esperança!... Quantas vezes ouvi dizer que o Brasil cansou de ser o país do futuro, ou que o Brasil era o país do futuro mas o futuro já chegou, já passou e o Brasil ficou aqui. O otimismo evidente da bossa nova não é tolo e é por isso que ela nem sequer nos parecia otimista quando estávamos à beira de mergulhar no tropicalismo. O otimismo da bossa nova é o otimismo que parece inocente de tão sábio: nele estão resolvidos provisória, mas satisfatoriamente, todos os males do mundo. De tal otimismo podemos dizer, lembrando Nietzsche mesmo, que é trágico. O cenho cerrado da esquerda festiva parece sério quando é apenas bobo.
O tropicalismo sempre quis estar à altura da bossa nova: eu vivo repetindo que o Brasil precisa chegar a merecer a bossa nova. A nossa descida aos infernos se efetuou como estratégia de iniciação ao grande otimismo ainda não superamos a fase sombria iniciada em 1967. De fato, nunca canções disseram tão mal do Brasil quanto as canções tropicalistas, nem antes nem depois. Com exceção das canções posteriomente criadas pelos próprios compositores do movimento ou pelos seus descendentes algo remotos: os melhores roqueiros dos anos 80. É de volta de tais infernos que pretendo trazer visões utópicas.
Certa vez, tive uma conversa fascinante sobre a canção "Tropicália", num castelo medieval em Cesimbra, com Roberto Pinho e um senhor português que era tido como alquimista. O ponto de ligação entre eles era o professor Agostinho da Silva, um intelectual português que foi perseguido por Salazar e veio para o Brasil, onde participou da formação da Universidade da Paraíba, da Universidade de Brasília, e que, durante o período dos grandes projetos culturais da Universidade da Bahia no fim dos anos 50 e início dos 60, organizou e dirigiu o Centro de Estudos Afro-Orientais em Salvador e disseminou uma forma de sebastianismo erudito de inspiração pessoal que atraiu algumas pessoas que me pareciam atraentes.
Não foi sem pensar neles que eu incluí a declamação de um poema de "Mensagem", de Fernando Pessoa, no happening que foi a apresentação da canção "É Proibido Proibir" num concurso de música popular na televisão em 1968. Mas eu não tinha embarcado na viagem desses sebastianistas nem como estudioso nem como militante. Apenas me parecera interessante que houvesse gente falando no Reino do Espírito Santo e numa futura civilização do Atlântico Sul, numa época em que todo o mundo falava em mais-valia e nas teses científicas de transformar o mundo através da classe operária.
E, sobretudo, foi por causa disso que eu entrei em contato com o livro "Mensagem", que revelou para mim a grandeza da poesia de Fernando Pessoa. Não me parecia possível que se demonstrasse mais fundo conhecimento do ser da língua portuguesa do que nesses poemas por causa de cada sílaba, cada som, cada sugestão de idéia parece estar ali como uma necessidade da existência mesma da língua portuguesa: como se aqueles poemas fossem fundadores da língua ou sua justificação final.
O fato de "Mensagem" ter como tema o muito da volta de dom Sebastião e da grandiosidade de um adiado destino português, enobrecia, a meus olhos, os interesses daquele grupo de pessoas que cultivavam tais mitos. De modo que, em Cesimbra, comecei a ver "Tropicália" e a pensar o tropicalismo também à luz do sebastianismo, ou melhor, na minha versão do sebastianismo, que consistia em adivinhações do que fosse o sebastianismo deles. Eu, no entanto, sempre fui cético.
Já no meu segundo ano de exílio em Londres, por causa de Glauber Rocha, que então filmava "Cabeças Cortadas", fui a Barcelona e vi a amargura com que o povo da Catalunha sofria sua anexação a Castela e a humilhação de ter sua língua materna esmagada pelo castelhano. Um dia, ouvi de um dos produtores do filme de Glauber a versão da descoberta da América que começava por dar Colombo como catalão de nascimento. Ele o afirmava com a mesma paixão com que ouvi alguns sebastianistas brasileiros e portugueses falarem em provas de que Colombo era português. Só anos depois é que li um livro de Unamuno em que ele fala de Portugal e da língua portuguesa com muito carinho e muita delicada observação, apontando a sensação de culpa que o pensamento das línguas portuguesa e catalã traz à alma de um escritor espanhol. Mas, naquele momento, em Barcelona, eu senti a identificação de Portugal com Catalunha nas suas criações de fantasias compensatórias. O poema "O Colombo" do Pessoa de "Mensagem", redime esse sentimento e, na sua grandeza, é já uma superação de toda inferioridade ao passo que propõe uma transcendência da mágoa.
No entanto, o português não é o catalão. Não só Portugal não ficou anexado à Espanha como espalhou sua língua pelo mundo. E aqui estamos falando português nesse imenso pedaço do continente sul-americano. Somos muitos milhões. Nunca chegamos a ser um país bom.
E grande parte de nossas mazelas vêm do fato de sermos portugueses. Vêm no bojo da maré e baixa da cultura mediterrânea e sul-européia que, por sua vez, é uma marola da grande fuga da onda civilizatória das regiões quentes para as regiões frias: Babilônia, Egito, Grécia e Roma deram lugar a Inglaterras e Alemanhas e Canadás; Roma ainda está inteira em nós a assistir a aclimatação de suas conquistas em territórios bárbaros, onde as idéias de agasalho, presteza e precisão se superdesenvolveram comandadas pela vitalidade de homens determinados, os quais como que transformaram a chama da corrida humana em implacável e penetrante luz fria. O Renascimento, o Ocidente moderno, é fortemente mediterrâneo, Leonardo e Camões, mas seus desenvolvimentos boreais é que nos trouxeram até onde estamos, para o bem e para o mal.
Os Estados Unidos são a última expressão dessa grande movimentação que, ao atingir o Extremo Oriente pelo Japão e tigres asiáticos neocapitalistas, e pela China neocomunista, está, parece, em vias de fazer algum tipo de desvio de rota ou virada de orientação. Não temos como mensurar o quanto devemos a esses minuciosos e limpos pecadores do norte Prometeus do fogo gelado que nos acenam com comunicações rápidas e computadorizadas de informações cada vez mais complexas e mais facilmente manipuláveis. E também com prescrições legais que tenham em conta uma pluralidade de comportamentos nunca antes imaginada numa sociedade humana.
Cresci desprezando os entreguistas que adoram servir de lacaios do capital americano: na sua forma arrogante de mostrar submissão vejo a mais abominável expressão de heteronomia. Mas sinto uma verdadeira identificação com americanos do tipo de Gertrude Stein, Walt Whitman, John Cage (e também, em larga medida, os artistas plásticos pop dos anos 60), que apostam numa afirmação da América, enquanto que muitos dos nossos amigos americanos "liberais" de esquerda me causam, não raro, um certo dissabor quando fazem uma mistura de mistificação da Europa com mistificação do Terceiro Mundo para negar o que há de perigosamente sugestivo na experiência americana.
Quando Camile Paglia diz que detesta a opinião pseudo-esquerdista dos meios universitários americanos de que a "Grande, Má e Feia América é uma sociedade corrupta, vazia e gananciosa que toda gente maravilhosa e benévola do resto do mundo olha com nojo", não posso deixar de concordar com ela. Amo os Estados Unidos. Apenas não exijo do Brasil menos do que levar mais longe muito do que se deu ali e, mais importante ainda, mudar de rumo muitas das linhas evolutivas que levaram até espantosas conquistas tecnológicas, estéticas, comportamentais e legais.

Continua à pág. 6-13

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