São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Leia texto inédito de Caetano Veloso, que integra o livro "Museu Aberto do Descobrimento", a ser lançado no próximo dia 27, pela Fundação Quadrilátero do Descobrimento

CAETANO VELOSO

Interessa-me o que o Brasil diria ao mundo se pudesse se fortalecer

Sei que, por um lado, o Japão fez e faz isso em escala considerável, principalmente no que diz respeito ao aspecto tecnológico, mas não só, e, por outro, que o Brasil não parece encontrar sequer os meios de esforçar-se para se tornar capaz de fazê-lo.
Mas há algo nos Estados Unidos que não encontramos no Japão: a América, o translado, a terra nova e os grandes espaços; a implantação de uma idéia em terreno tornado virgem pela incapacidade mesmo de considerar as culturas indígenas; a imigração variada européia e asiática, que trouxe mais nuances e diferentes problemas ao panorama social já na base violentamente problematizado pela vinda forçada dos negros; um ar de liberdade de movimentos que nenhum lugar de cultura autóctone sedimentada pode de fato conhecer e isso o Brasil tem em comum com os Estados Unidos e com todos os países americanos.
Talvez o Brasil nos induza a esperar dele experiências mais extremas. E aqui é o momento de correr o risco de considerar vantajosas até mesmo as condições adversas com que a história nos presenteou. Fazer, por exemplo, do fato de não termos sido eficientes o suficiente no extermínio dos índios como os nossos irmãos do norte, e mesmo do fato de vermos que ainda estamos efetuando, com atraso, esse extermínio, um oportunidade de nos tornarmos índios ao passo que nos reconhecemos ultra-ocidentais.
E aqui quero citar um daqueles filósofos franceses que começam ameaçando o senso comum mas nada dizem que possa valer por um desmentido do consenso, mas que parece ser mesmo um grande sujeito: Gilles Deleuze, que, naquele hilariante livro candidamente chamado "O que é a Filosofia?", numa inacreditavelmente convincente jogada retórica, diz do filósofo que ele "deve tornar-se índio para que o índio não sofra a miséria de ser índio". Mas só ganha o direito de arriscar tais inversões que se sabe engajado num sonho grande e luminoso. Só na perspectiva do país artista superior que nós temos o dever de perceber que a história sugere que sejamos é que podemos revalorar aspectos de nosso atraso como sinais de que casualmente escapamos de uma servidão maior do misterioso desvelar do nosso destino.
Uma das vantagens da nossa abominável situação é podermos pensar que tudo ainda está por fazer. Dito assim, isto parece um lugar-comum estéril. E, pior, pode trazer a seguinte pergunta como complemento: e se justamente o Brasil tivesse sido uma grande oportunidade que se perdeu irremediavelmente, deixando-nos apenas com a degradação social que é demasiadamente complexa para servir de papel em branco ou ponto de partida, ou seja, se estivermos diante da mera entropia e não do caos inicial de onde se pode extrair uma ordem bela?
O fato é que tanto nas minhas canções tropicalistas como nas de agora o que eu vejo é a tensão entre esses dois últimos termos. Entropia/caos. Mas eu, eu mesmo, não o mero escravo das canções, penso os aspectos entrópicos como problemas a superar deveres severos: temos que começar por ler com singeleza os sinais de trânsito nas cidades. Por outro lado, amo o caos; não apenas como caldo rico de onde se destilará a nova ordem bonita, mas como desordem atual.
O adjetivo "bonita", escolhido para qualificar a futura ordem desejada, me parece revelar que o colorido do caos o desequilíbrio onde viceja a violência e a perversão e também o talento excepcional e a inventividade, os caprichos e os relaxos, as vanguardas estéticas e os exotismos sexuais, o colorido desse caos, dizia, é absolutamente indispensável à composição da nação sonhada. Eu o estamparia nas vestes do povo desse país do futuro.
Ninguém disse melhor a natureza do nó que estamos a atentar desatar do que Antônio Cícero um intelectual de formação filosófica acadêmica que trabalha também com música popular nestas palavras que reli, citadas por Carlos Diegues, num belo artigo sobre o futuro do Brasil: "Podemos dizer que o paradoxo do Brasil está em, sendo capaz de oferecer a prefiguração da solução de alguns problemas que poucos países o conseguem efetivamente enfrentar, não ter conseguido efetivamente enfrentar alguns problemas que muitos outros países já resolveram total ou parcialmente."
Tudo o que eu disse e tudo o que estou por dizer aqui, está contido nessa formula de Cícero; e não creio que eu possa dizer melhor: apenas dou testemunho de como em mim esse modo de encarar o Brasil se desenvolveu com o colorido próprio das minhas idiossincrasias e das minhas limitações.
Todo o povo frustrado pode fazer fantasias compensatórias. Mas o que pensar quando estamos na situação de criar tais fantasias e temos como matéria real um país novo, imenso, tropical, mestiço e de fala portuguesa, quer dizer, usando uma das línguas do Sul da Europa que mais tem sofrido humilhações históricas depois de ser a que mais se espalhou pelo mundo, a língua em que se escreveu o épico inaugural da dominação européia sobre o globo, o grande épico da expansão ocidental? E, no entanto, frequentemente somos catalogados como não fazendo parte do "Ocidente".
Devemos pensar assim: o mundo em que vivemos parece-nos mais com o mundo da história remota da humanidade, quando violentos avanços tecnológicos foram feitos, do que com a Grécia e Roma. Estas entregaram-se ao cultivo das artes, das leis e das idéias, num ambiente tecnologicamente estável, amparado na mão-de-obra escrava. O curioso é que qualquer desvio extra-ocidental do curso da história atual –mesmo que seja a temida e pouco falada liderança da China sobre os não-ocidentais numa ação contra os atuais países ricos (eventualidade que já ouvi referida em tom alarmista na boca de conservadores americanos e em tom auspicioso na boca de sebastianistas portugueses) –poderá levar a uma retomada da ênfase greco-romana nas virtudes pessoais e sociais, em detrimento do furor tecnológico.
Ou seja, pode levar o Ocidente de volta ao Ocidente. Um amigo meu, um dos mais significativos representantes da contracultura nos anos 60, que sempre me impressionou pela inteligência ao mesmo tempo livre e realista, enlouqueceu. Antes de sua loucura tornar-se fato consumado, ele me confidenciou que tinha chegado ao limite de sua capacidade de pensar, em busca de uma alternativa para a cultura ocidental, e não conseguia sair dela: suas respostas e soluções eram intransponíveis. No entanto, muito de sua energia tinha sido gasta no esforço de ir além não apenas da injustiça social, da mediocridade e do subdesenvolvimento, mas também do estágio em que encontrara a religião, o sexo e a própria concepção do lugar do homem na natureza.
Sendo paulista, o fato de ser brasileiro era para ele um acaso de muita pouca importância para que fosse sequer considerado infeliz: a perspectiva brasileira e a língua portuguesa eram para ele uma ferramenta neutra. É assim que eu quero pensar. Mas, desde o início, sempre considerei meus desejos de mudar o mundo como sinal de um movimento interno da história do Brasil, e cada pensamento ambicioso meu, um esboço de aventura da própria língua portuguesa.
Eu sei que os cultores de mitos medievais que sirvam de inspiração para extremados nacionalismos modernos são a semente das regressões totalitaristas: um professor português de literatura me disse, um dia, a respeito de Agostinho da Silva, que a princípio temeu que suas idéias se identificassem com o salazarismo. Às vezes, algumas afirmações instigantes de Ariano Suassuna sobre o Brasil a mim me soam aparentadas com a famosa frase de Salazar –"prefiro ver Portugal pobre do que Portugal diferente".
Ao contrário, penso que o Brasil deve tornar-se o mais diferente de si mesmo que lhe for possível, para encontrar-se. E também saber livrar-se da pobreza que desumaniza sua população. Devemos aprender a observar as formalidades relativas aos direitos humanos e tornarmo-nos destros para a tecnologia. Devemos estar à vontade na versão de Ocidente que nos veio do norte. E superá-la. Não se trata de uma adaptação ao que é ocidental, como se espera de países asiáticos e africanos. Somos ocidentais. Mas Ocidente sempre significou transcendência da particularidade cultural, ambição de tomar nas rédeas a história da espécie.
Assim, amar a língua portuguesa é amar sua capacidade como instrumento universal; falar português é livrar-se da prisão do português. Outro dia, um economista americano esteve no rio –um que fazia propaganda do livre mercado como salvador das vítimas do estado, e aconselhava a que abríssemos nossa rede de vôos domésticos às empresas aéreas americanas –esse economista (aliás, um americano negro) esteve aqui e disse que se orgulhava de só falar inglês e não querer aprender nada de outras línguas pois o inglês é a língua do futuro, ao ler essa declarações, pensei imediatamente: não é assim que eu amo a língua portuguesa. A língua em que Fernando Pessoa escreveu: O Ocidente, futuro do passado... Para nós, não deve se tratar de uma adaptação ao que hoje se chama Ocidente, mas de uma sua retomada radical que implique uma sua superação. Neste estágio a minha loucura.
Naturalmente, tenho capacidade para a sensatez: mesmo sem estudar a Constituição de 88, concluo que há conquistas ali que devem ser defendias, com unhas e dentes, contra qualquer ameaça –o exemplo indiscutível que me ocorre é a independência que foi dada ao Ministério Público. Mas não me sinto inclinado a participar do horror ao capital estrangeiro ou da defesa das estatais. Desde antes do tropicalismo, interessa-me saber o que o Brasil diria ao mundo se ele pudesse se fortalecer, o modelo econômico para chegar a esse fortalecimento sendo de importância secundária.
No entanto, a escandalosa insensatez também me guia. O já citado Agostinho da Silva costuma dizer que Portugal já civilizou Ásia, África e América –falta civilizar Europa. Tal inversão petulante encontra eco dentro de mim. Descartado o risco de ser a expressão do ressentimento contra a luminosidade boreal vitoriosa, por parte de obscuros perdedores da história, essa exortação se identifica com minha idéia de radicalização do Ocidente implicando sua superação. Nessa perspectiva, o Brasil não precisa provar que tem caráter e é uma promessa de originalidade. Nem a má imagem que dele fazem hoje os brasileiros nem a emigração para países mais ricos podem apagar a força do que somos nem o sentido que tem o modo como o acaso nos tem tratado.
A Irlanda, do meio do século 19 ao início do século 20, esmagada sob a opressão inglesa, perdeu, por emigração, metade de sua população. As coisas lá nunca se acertaram; a ira santa contra a Inglaterra levou os irlandeses até a prática de um terrorismo que não se pode chamar de "esquerda". Ninguém, no entanto, ao pronunciar o nome da Irlanda, pensa um mero e pedestre fracasso. E não se pensa só em Joyce, Wilde, U2, Sinead O'Connor, Yeats ou Neil Jordan, que marcaram o mundo usando a língua do opressor –pensa-se no fogo irlandês, a teimosia, nos cabelos de Maureen O'Hara e no álcool. A Irlanda pode nunca superar suas chagas, mas é algo cuja grandeza reconhecemos.
Mas o Brasil, que não é apêndice da língua inglesa, é algo cuja grandeza em potência se opõe na condição de país novo, americano, com o mito da tábula rasa e o mito da democracia racial. Mas "o mito é o nada que é tudo". A insensatez, assim, me leva a dizer que, pelo Brasil, o gosto da civilização ocidental inicia Grécia, Roma e o gosto mediterrâneo e florestal Israel (grandemente Israel, que nunca foi potência econômica ou militar para dar ao mundo o arsenal de idéias e estilos que deu), mas também o Islã e Jesus (filhos de Israel), e Olodumarê, Dionísio, Ulrá– podem e devem tomar nas mãos as rédeas do mundo, fazendo-o transcender o estágio nórdico e sua ênfase bárbara na tecnologia.

LEIA
reportagem sobre o livro "Museu Aberto do Descobrimento", que inclui o texto acima, à pág. 6-16

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