São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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O sorriso do dr. Ulysses

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

O dr. Ulysses era um político nato. Participou e influenciou os principais acontecimentos nacionais. Assim foi o lançamento de sua anticandidatura contra o regime militar. A campanha das diretas. A elaboração da Carta Magna. A luta pelo parlamentarismo e vários outros.
Estive com o amigo Ulysses uma semana antes de ele morrer. Foi num restaurante aqui em São Paulo. Batemos um bom papo. Piadista como sempre, ele estava a se queixar do fato de precisar de receituário para comprar seus remédios de rotina enquanto grandes mandatários da nação estavam recebendo suas drogas a domicílio. Demos muita risada com suas tiradas. Mas senti nele uma alma machucada. Não era o mesmo dr. Ulysses.
Coisas que sempre pensei terem sido esquecidas continuavam a remoer a intimidade do "sr. Diretas". Ele se referiu, com tristeza, à visita que os governadores do PMDB lhe fizeram, na sua casa, no dia 11 de abril de 1989, com o fim de demovê-lo de seu velho sonho de ser candidato à Presidência da República, cedendo sua vez a um deles que, aliás, não teve coragem de integrar o grupo dos visitantes.
Jamais imaginei que isso tivesse doído tanto ao presidente do PMDB. Pois doeu. E doeu muito. O que mais doeu foi ter ele sido tratado durante a campanha eleitoral como "boi de piranha" –um jurado de morte. Como diz Luis Gutemberg em sua biografia: "Os governadores, depois de evitarem a candidatura de Ulysses, decidiram conscientemente condená-lo à derrota". O dr. Ulysses soube disso e assim se manifestou: "Senti-me como se tivessem me lançado ao mar para a travessia do Canal da Mancha atado a pesos, abandonado de assistência, entregue apenas ao meu fôlego para enfrentar as intempéries, a temperatura da água e o tráfego de navios".
Condenaram o experiente político à mais humilhante derrota eleitoral. Com sua imensa folha de serviços, acabou obtendo apenas 4% dos votos válidos.
Mas a sua tristeza não parou aí. Ele se queixou também das traições que lhe fizeram na luta pelo parlamentarismo em 1992. Deputados do próprio PMDB, cumprindo ordens de quem queria ser presidente no regime presidencialista, solaparam todas as suas ações em prol do plebiscito em 1993.
Por fim, queixou-se dos golpistas que tiraram de suas mãos o comando do partido no qual cresceram. Golpistas esses que acabaram obstruindo o único plano que restara ao veterano Ulysses, ou seja, a volta à presidência da Câmara Federal. Em troca disso, prometeram-lhe a participação em uma insignificante comissão que nada representava para sua grandiosa estatura política.
Apesar de toda essa "catarsis", o dr. Ulysses não perdeu seu bom humor. Por isso, terminamos aquela conversa no meio de sorrisos e ele me dizendo: "Antonio, a maioria das pessoas tem de esperar a Justiça divina para receber sua sentença. Mas os mais maldosos recebem o veredito aqui mesmo. A Justiça tarda, mas não falha".
Também neste caso, o prognóstico do dr. Ulysses se concretizou inteiramente. A Justiça tardou, mas não falhou.

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