São Paulo, domingo, 25 de setembro de 1994
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Direito de fazer nada

CAIO TULIO COSTA

As democracias devem conviver também com aqueles que por romantismo, resquíscio anárquico, apatia ou alienação, se recusam a votar
Caio Túlio Costa
Daqui a oito dias os brasileiros estarão escolhendo as pessoas que ocuparão os aparelhos do Estado nos próximos anos. Discutem-se desejos, promessas, programas e até o caráter dos candidatos. Passam-se as eleições, os governantes se agarram ao Estado e a vida continua na mesma toada, cada mortal comum tentando se virar como pode, inventando jeitos de se educar, se proteger, sobreviver.
Se você leu a reportagem principal desta revista, teve atenção para um dos muitos tabus existentes no Brasil, o do voto compulsório. Entrevistado, o professor Nicolau Sevcenko critica o silêncio de seus pares, os intelectuais, sobre a liberdade de não votar. Partem do falso princípio de que votar é obrigação. "Se democracia é participação do cidadão, uma participação deficiente debilita-a", estabelece o "Dicionário de Política" de Norberto Bobbio, incensado cientista político da Itália, país no qual, de quebra, só vota quem quer.
Por favor, vamos parar e pensar. Parodiando Baudelaire, não é esta avalanche que vai nos levar na sua queda.
A rapidez das transformações em curso, tanto no exterior quanto no Brasil, leva muita gente a passar batida em alguns casos emblemáticos –o do voto obrigatório é um deles. Exigir o voto é, em igual medida, afirmar que o brasileiro não está preparado para votar. É como forçar uma criança a tomar banho todos os dias sem explicar-lhe as razões pelas quais necessita estar limpa.
Faz 60 anos que o brasileiro é compelido ao voto. Os mais espertos viajam no dia da eleição, ou depois pagam multa para tirar passaporte ou conseguir empréstimo. O Estado parece querer dizer: reconheça-me oficialmente pelo menos de vez em quando, levante-se, vá até a urna sufragar estes que te deixamos escolher.
Pois é direito líquido não escolher. Não se fala aqui de anulação do voto, mas de não ir votar. Anular significa aceitar o processo enquanto tal, ir lá, pegar a cédula, rabiscar, fazer a cena. As democracias devem conviver também com aqueles que divergem do processo em seu todo e por romantismo, resquíscio anárquico, pura apatia ou alienação, se recusam a enfrentar urnas na condição de votante.
Impelir o cidadão a votar é procurar tutelar a democracia, é tentar brecar seu desenvolvimento. Uma maneira honesta de sentir a importância exata do Estado brasileiro seria verificar quem realmente o reconhece enquanto tal, votando por vontade própria.
Obrigar o cidadão a votar é o mesmo que taxá-lo com os 60 impostos existentes, enquanto se sabe que ele nunca vai conseguir pagar tanto imposto. Pior, instituir mais impostos (como fez Fernando Henrique Cardoso quando ministro da Fazenda ao criar o imposto sobre o cheque), porque não se recolhe aquilo que se considera suficiente com a montoeira de impostos existente.
Mas o país é sortudo. Qual democracia recente –para falar só no pós-guerra– teve o luxo de ter candidatos como Lula e Fernando Henrique no topo da corrida presidencial? Qual democracia apresenta nos candidatos a presidente oposição entre um político-intelectual da qualidade de um Fernando Henrique e um político-operário do porte de um Lula, um homem que junto com o Partido dos Trabalhadores tem sido o fiel da balança na democratização desde os anos 70? Alguém tem um palpite? Pois nenhum país teve ou está tendo esta oportunidade senão o Brasil de hoje.
Por isso, me animo a dizer que é tão importante votar para escolher alguém que possa levar a sério a política quanto dar liberdade ao cidadão de não votar, de não ir às urnas.
Democracia é isso aí. Respeitar, ao infinito, até o direito de nada fazer.

Caio Túlio Costa é Diretor de Revistas da Folha de S. Paulo.
Ilustração: "Divisibilidade Infinita", pintura de Yves Tanguy, 1942

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