São Paulo, terça-feira, 27 de setembro de 1994
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Leia íntegra do discurso do chanceler brasileiro

Está é a integra do discurso de Celso Amorim na ONU

Senhor presidente,
Os efetivos progressos alcançados não devem impedir que vejamos com clareza os desafios que seguem reclamando ação decidida por parte da comunidade internacional.
Os direitos fundamentais do ser humano, apesar de incorporados aos valores universalmente reconhecidos, ainda reclamam apoio firme e decidido de todos os que neles acreditam.
As condições sociais da maioria da população mundial continuam a deteriorar-se. Nos últimos vinte anos, agravou-se a distância entre nações ricas e pobres, entre os milhões que se alimentam, estudam e têm excedentes para o lazer e os bilhões que lutam para sobreviver. As pressões migratórias em direção ao Norte desenvolvido e muitos dos conflitos no Sul empobrecido são faces da mesma moeda. Os mais jovens, sobretudo, permanecem vítimas da privação e da falta de perspectivas, na maior parte do mundo.
A globalização da economia e o fortalecimento do livre comércio ainda precisam demonstrar, na prática, o seu inegável potencial como fator de crescimento e bem-estar para todos os povos. O velho protecionismo, agora revestido de novas roupagens, resiste às investidas da racionalidade econômica. O impacto positivo dos acordos de Marrakech vê-se gravemente ameaçado por novas condicionalidades, com efeitos restritivos sobre o fluxo de comércio internacional. Questões em si mesmas legítimas, como a preservação do meio ambiente e padrões trabalhistas universalmente aceitos não podem servir de pretexto para dificultar-se ainda mais o acesso dos bens produzidos nos países pobres ao mercado das nações mais abastadas. O custo do reajuste das economias mais prósperas não pode ser transferido para os ombros dos que nada ou pouco possuem.
O domínio da tecnologia é um grande divisor de águas entre os países industrializados e os países em desenvolvimento. As dificuldades de acesso a tecnologias avançadas constituem obstáculo à superação das desvantagens dos países em desenvolvimento, reduzindo-lhes a competitividade e criando entraves à transformação dos processos de produção. A nova divisão internacional do trabalho não pode reeditar velhos esquemas que já provaram sua ineficácia. A integração competitiva dos países em desenvolvimento na economia internacional há de basear-se em vantagens comparativas dinâmicas, com crescente incorporação do conhecimento ao processo produtivo. A par do indispensável esforço interno de cada país, este salto qualitativo pressupõe um ambiente internacional fundado na cooperação.
Senhor presidente,
Para consolidar a paz e tornar irreversíveis os progressos conquistados, devemos ser capazes de desenvolver uma visão de futuro, uma nova utopia, que nos indique caminhos e seja, ao mesmo tempo, viável. O Brasil está convencido de que uma ordem efetivamente nova deve fundar-se sobre uma perspectiva pluralista e democrática das relações internacionais.
Não se trata de supor, de modo irrealista, que interesses específicos e por vezes conflitantes deixarão de afirmar-se na ação dos Estados e dos demais atores internacionais. Trata-se, isto sim, de compreender que os interesses de todos estarão melhor atendidos quando as aspirações básicas da grande maioria forem razoavelmente satisfeitas.
A interdependência precisa ser entendida sob uma dimensão integrada, e não apenas como fenômeno econômico de mercado. Ela supõe capacidade política de agir em conjunto com vistas a objetivos que são de toda a humanidade. Num mundo interdependente, a melhoria das condições de vida em um longínquo país pobre pode representar a criação de empregos em um país desenvolvido. Eliminar a exclusão e promover a participação de todos constitui não só um dever moral, mas demonstração de lucidez e tirocínio.
Senhor presidente,
A ordem a que o Brasil aspira tem, como um de seus pilares, o compromisso fundamental com o desenvolvimento. Este conceito tem a virtude de abranger as necessidades essenciais de todas as nações, grandes e pequenas, ricas e pobres. O desenvolvimento consolida a liberdade, dá dimensão concreta à dignidade do homem, valoriza a eficiência, promove a estabilidade, complementa a democracia. O desenvolvimento constrói a paz.
A promoção do desenvolvimento deve beneficiar-se das lições do passado. Devemos formular um conceito de desenvolvimento que reconheça em cada país o principal agente de sua própria prosperidade, mas que seja capaz de integrar as várias vertentes de sua dimensão internacional, em matéria de comércio, de investimentos e de fluxos de tecnologia.
Um esforço internacional renovado em favor do desenvolvimento só será bem sucedido se contar com uma parceria ativa e mutuamente vantajosa entre países do Norte e do Sul. A defesa dos interesses das nações mais ricas requer seu envolvimento na superação do atraso nas nações mais pobres. Acreditar no contrário é acreditar que o incêndio que consome a casa do vizinho jamais ultrapassará as cercas de nossa casa. É, numa palavra, uma insensatez, cujo preço povo algum parece rico o bastante para pagar.
Há que se repensar em profundidade a atuação das Nações Unidas na promoção do desenvolvimento. Nenhuma outra tarefa das Nações Unidas responderá com maior acerto à necessidade de sustentar e promover a paz e de construir uma ordem justa e estável.
Devemos evitar a cristalização de uma indesejável divisão de trabalho entre as Nações Unidas, de um lado, e as instituições de Bretton Woods, do outro. A paz e o desenvolvimento constituem um todo indivisível e devem apoiar-se mutuamente. O grande foro das Nações não pode ficar à margem de decisões que emanam dos propósitos inscritos em sua própria Carta.
Essas preocupações estiveram na origem do lançamento da agenda para o desenvolvimento, em que a diplomacia brasileira esteve profundamente empenhada.
Várias conferências das Nações Unidas, algumas já realizadas, outras por realizar, vêm contribuindo significativamente para evidenciar a necessidade de tratar de forma abrangente e coordenada o tema do desenvolvimento, que, de uma forma ou de outra, esteve ou estará presente nas conferêcias do Rio de Janeiro, sobre meio ambiente e desenvolvimento, e as projetadas reuniões de Copenhague, sobre desenvolvimento social, e de Pequim, sobre a mulher. É cada vez mais firme e universal a consciência de que as decisões alcançadas nesses encontros só produzirão resultados efetivos se todas essas questões forem vistas de forma integrada.
Com vistas a propiciar o debate de todos esses temas em um quadro conceitual mais amplo, o governo brasileiro deseja propor a convocação de uma conferência sobre o desenvolvimento, que buscaria enfeixar e sintetizar em um único conjunto coerente as iniciativas e os programas destinados a promover o bem-estar e a dignidade do ser humano.
Senhor presidente,
A democracia há de ser a norma do relacionamento político dentro dos Estados e entre eles. A democratização dos Estados e das relações internacionais é a meta que poderemos tornar realidade. O fortalecimento do papel da Assembléia Geral e a ampliação do Conselho de Segurança, com a participação de países em desenvolvimento em todas as categorias de membros, são passos importantes e necessários no caminho da democratização e de uma maior legitimidade.
Como outros países-membros, desejamos que a reforma do Conselho de Segurança resulte no aumento de sua eficácia. Entendemos que tal eficácia somente será assegurada por uma composição verdadeiramente representativa do conjunto das nações. No início deste mês, os chefes de Estado e do governo de catorze nações da América Latina e do Caribe que formam o Grupo do Rio, reunidos na cidade do Rio de Janeiro, afirmaram que '(..) por sua tradição jurídica e contribuição à causa da paz, a região da América Latina e do Caribe deve estar contemplada em qualquer ampliação do Conselho'.
O Brasil tem participado ativamente do debate sobre a ampliação do Conselho de Segurança. Temos deixado clara nossa disposição de assumir todas as responsabilidades inerentes aos países que se credenciarem a ocupar assentos permanentes.
Eleito para integrar o Conselho de Segurança no corrente período, o Brasil tem procurado corresponder à confiança recebida. Temos pautado nossas posições pelo respeito aos princípios da não-intervenção e da soberania e integridade territorial dos Estados; pela busca constante da solução pacífica e negociada dos conflitos; pelo primado do direito na preservação da ordem pública internacional; pelo respeito aos direitos humanos e liberdades fundamentais e pela participação nas operações de manutenção da paz em diversas regiões do globo.
Somos parte da América Latina e orgulhamo-nos de estarmos inseridos em sua longa história de paz. A América é a região mais desarmada do mundo e a única a haver-se tornado, por força do Tratado de Tlatelolco, definitivamente livre das armas nucleares. A adesão de Cuba ao trtado, anunciada em carta do presidente Fidel Castro ao presidente Itamar Franco, em respostá à gestão brasileira, vem completar este quadro.
A América Latina tem sido fator de estabilidade internacional em um mundo conturbado. Nossa tradição jurídica, construída em décadas de esforço ordenador das relações interamericanas representa contribuição relevante a comunidade internacional. Noso pioneirismo em matéria de desarmamento nos autoriza a buscar gestos equivalentes de toda a comunidade internacional, em especial das potências nucleares. Nesse contexto, adquire especial relevância a pronta adoção, consubstanciada em compromissos multilateralmente negociados, de medidas efetivas de redução, e não apenas de controle, de seus arsenais (inclusive de material nuclear sensível como plutônio). É igualmente imperativa a conclusão das negociações visando à assinatura de um tratado universal de proscrição de testes nucleares.
Senhores delegados,
O Brasil está decidido a participar ativamente da construção da nova agenda internacional baseada na participação e na cooperação universal para a paz e o desenvolvimento.
Essa disposi8ção decorre de nossa própria identidade. Somos uma sociedade plural, aberta, resultante do encontro entre culturas e modos de vida distintos, que formaram uma nova cultura e um novo modo de vida, fundados na tolerância e no entendimento. Temos fronteiras definidas de forma pacífica com 10 países, sem que se verificassem quaisquer conflitos há mais de 120 anos.
Forjads no diálogo, na conciliação e na reforma pacífica, a sociedade brasileira vive momento de grande afirmação democrática, sob a liderança do presidente Itamar Franco. Dentro de poucos dias, realizaremos as maiores eleições da história do país. Perto de cem milhões de eleitores irão às urnas, em clima de absoluta liberdade para escolher, dentre 35.000 candidatos, seus representantes nos poderes Executivo e Legislativo, nos níveis federal e estadual.
Desenvolvemos uma das economias mais diversificadas do Hemisfério Sul. Caminhamos para a plena estabilização econômica, com uma moeda forte. Estão dadas, assim, as condições para a retomada de um processo sustentado de crescimento econômico, que, seguramente, voltará a situar o Brasil entre as economias mais dinâmicas do mundo.
Avançamos no processo de crescente integração da economia ao comércio internacional. Em janeiro próximo, juntamente com Argentina. Paraguai e Urguai, colocaremos em vigor uma tarifa externa comum e, assim, teremos consolidado uma união aduaneira capaz de gerar crescimento econômico e prosperidade. A aproximação de outros países sul-americanos em direção ao Mercosul vem demonstrar que a visão de uma área de livre comércio da América do Sul caminha de forma efetiva para sua materialização. Essas realizações representam exemplo expressivo da capacidade empreendedora dos países latino-americanos e constituem etapa fundamental da consolidação da América do Sul como um todo harmônico e integrado.
Os esforços de cooperação política e econômica do Brasil não se esgotam na América Latina. De vocação universal, nossa diplomacia tem-se empenhado em consolidar a aprofundar os laços tradicionais que nos unem a países amigos em todos os quadrantes do globo, assim como em desenvolver novas e importantes parcerias políticas e comerciais. Desde o adensamento das tradicionais relações hemisféricas e com os países industrializados, até a proposta de fórmulas criativas de cooperação com países da África. Ásia e Oriente Médio, temos procurado elevar nosso diálogo e patamares cada vez mais elevados e, em muitos casos, estabelecer relacionamentos dinâmicos e privilegiados.
Os vínculos do Brasil com as nações irmãs africanas vêm sendo reforçados pela iniciativa de estruturação da comunidade de países de língua portuguesa. Esse novo e importante foro ligará países irmãos em diferentes continentes e fornecerá área propícia ao entendimento e à cooperação.
A partir do elo geográfico que nos une, o Atlântico Sul, pretendemos alargar os horizontes da cooperação entre a América e a África, rejuvenescida e fortalecida, moral e politicamente, com a eleição de Nelson Mandela na África do Sul.
A zona de paz e cooperação do Atlântico Sul transformará esse oceano em área livre de armas nucleares e será exemplo de relações solidárias e fraternas entre dois continentes. Com esse objetivo, os vinte e quatro países que hoje integram esse foro acabam de reunir-se em Brasília, com resultados extremamente auspiciosos para o fortalecimento dos vínculos entre a África e a América do Sul.
Senhor presidente,
O Brasil deseja para si o que deseja para todos os povos. Sabemos que não podemos ser prósperos e felizes em meio à privação e ao infortúnio. Nossa diplomacia, infensa a qualquer forma de hegemonismo, busca contribuir, com confiabilidade e previsibilidade, em cooperação com todas as nações irmãs, para que a nova ordem mundial que se está forjando corresponda às nossas aspirações: que seja democrática, estável, desarmada, respeitosa da soberania dos Estados e comprometida com o desenvolvimento. Muito obrigado.

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