São Paulo, sexta-feira, 6 de janeiro de 1995
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Para estrangeiro ver

A "revolução social" prometida na campanha pelo "príncipe dos sociólogos" começou bem
FÁBIO KONDER COMPARATO
Fernando Pessoa enganou-se: fingidor mesmo não é o poeta, mas um certo tipo de político brasileiro. Finge tão completamente, que chega a se comover com os seus próprios discursos sobre a injustiça social e a violação dos direitos humanos. Encerrada, porém, a necessária parte teatral da representação política, as lágrimas secam e tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
A "revolução social" prometida pelo "príncipe dos sociólogos" começou bem. Tivemos, com a posse do ministério, o "esquecimento" do programa de reforma agrária, o pedido de desculpas a ACM pela crítica ao uso político do poder de concessão de rádios e televisões, e a substituição de toda a ênfase do Plano Decenal de Educação no ensino fundamental pela proposta americanizada de supressão do vestibular.
Para completar o quadro, o ministro da Justiça, Nelson Jobim, anuncia a criação de uma assessoria especial de assuntos internacionais, encarregada de "abastecer as embaixadas brasileiras com informações positivas sobre o Brasil". Leia-se: convencer as instituições financeiras internacionais, a começar pelo Banco Mundial, de que o nosso querido país aplica uma vigorosa política de proteção dos direitos humanos.
Ou seja, em lugar de lutarmos vigorosamente contra as reiteradas violações dos direitos fundamentais, perpetradas pelo Brasil afora, vamos doravante demonstrar, perante o mundo, que temos sido um modelo de sociedade civilizada e que os órgãos estatais têm agido de forma exemplar na defesa da pessoa humana, sobretudo dos indígenas, dos posseiros e seus defensores, das crianças de rua, dos favelados e dos presidiários.
O ministro da Justiça, que foi professor de Direito e um dos mais atuantes deputados constituintes, obviamente não ignora que, segundo a Constituição em vigor, os direitos e garantias fundamentais, nela expressos, não excluem outros, decorrentes dos tratados internacionais em que o Estado brasileiro é parte (art. 5º, parágrafo 2º). Tampouco deve ignorar que, entre os princípios que regem o comportamento de nosso país nas relações internacionais, encontra-se o de "prevalência dos direitos humanos" (art. 4º – II).
Ora, isto significa, em boa lógica, que a nossa Constituição exclui a aplicabilidade ao Brasil, em matéria de direitos humanos, do princípio da não-ingerência internacional em assuntos internos. A proteção dos direitos fundamentais do homem é considerada, constitucionalmente, como assunto de legítimo interesse internacional, pelo fato de dizer respeito a toda a humanidade e não apenas à sociedade brasileira em particular.
Por outro lado, nenhum Estado federal, quando acusado de descumprir deveres jurídicos internacionais, pode legitimamente defender-se invocando o fato de que as violações desses deveres foram perpetradas por funcionários de governos locais e que a competência para a apuração dos fatos e o julgamento dos responsáveis não pertence ao governo federal. No entanto, é isso que temos feito, sistematicamente, nas instâncias internacionais.
Aberto o processo de violação de direitos humanos, o representante diplomático brasileiro comunica o fato ao Itamaraty, que adverte o Ministério da Justiça, o qual por sua vez pede informações ao governo estadual, que responde invariavelmente que as providências estão sendo tomadas. E fica tudo por isso mesmo.
Quando finalmente vaza na imprensa estrangeira o fato de que não houve a apuração dos crimes e a punição dos culpados, os zelosos defensores da honra pátria, como o atual embaixador em Washington, expedem cartas furiosas aos jornais para profligar a torpe difamação de que tem sido vítima o nosso pobre país.
Em vez de procurar tapar o sol com a peneira, é uma pena que o ministro da Justiça, bom especialista em reforma constitucional, não haja pensado em propor uma emenda à Constituição, incluindo no âmbito da competência federal o processo e julgamento dos crimes de violação de direitos humanos, objeto de tratados internacionais de que o Brasil é parte, bem como extinguindo as Justiças Militares estaduais.
Uma vez aprovada essa emenda, o ministro poderia cogitar de redigir um projeto de lei, definindo como crimes de violação de direitos humanos os delitos contra a pessoa, praticados por agentes policiais no exercício de suas funções, bem como os crimes cometidos contra indígenas, pois estes se encontram, constitucionalmente, sob a proteção da União Federal (art. 231).
Seja como for, por maior que fosse a malevolência da oposição, ela nunca teria sido capaz de prever que, meio século após a derrocada do Estado Novo, o governo federal faria ressurgir, em pleno Ministério dito da Justiça, o famoso DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda).

FÁBIO KONDER COMPARATO, 58, advogado, doutor pela Universidade de Paris (França), é professor titular da Faculdade de Direito da USP, autor do livro "Para Viver a Democracia" e fundador e diretor da Escola de Governo.

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