São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Nascimento de um oligarca

LUÍS NASSIF

Na passagem de cada regime político, os grandes cortes modernizantes provocam turbulências e redefinem os sistemas de poder no país. Quem se adapta, continua na crista da onda. Quem vacila, vira dinossauro.
Historicamente, o velho coronelato brasileiro sempre demonstrou capacidade inacreditável de sobrevivência política. Tanto que conseguiu adaptar o ritmo de modernização política e econômica do país ao seu próprio ritmo, resultando daí essa necrofilia xipófaga, do gêmeo morto controlando o gêmeo vivo.
O país testemunha neste momento a reedição do velho processo de formação de uma candidatura oligarca à Presidência da República –a do ex-ministro da Fazenda Ciro Gomes. O método é o mesmo adotado no fenômeno Fernando Collor –que, no meio do processo, fugiu ao controle.
Primeiro, os velhos coronéis cheiram os ventos políticos, para saber como se colocar nos novos tempos. Depois, tratam de identificar e cooptar novos personagens, cujas imagens não estejam esgarçadas.
O personagem ideal precisa dispor de duas características essenciais: ser suficientemente inescrupuloso para estar e pular, sempre que necessário, de todos os barcos políticos e ter o talento cênico que permita viver papéis conflitantes simultaneamente –e mostrar-se absolutamente convincente em cada um deles.
Ciro Gomes começou sua carreira política como deputado estadual pela Arena –o partido do governo militar. No meio do caminho, um grupo de empresários cearenses rompeu com o coronelato local e tomou o poder. O jovem Ciro mudou-se para o grupo vitorioso, tornou-se prefeito de Fortaleza, depois governador do Ceará e notabilizou-se pelas críticas ferozes que fazia aos "filhotes da ditadura".
Quando o terremoto que derrubou o regime anterior se assentou, percebendo que o mais influente dos seus próceres –Antônio Carlos Magalhães– permanecera o mais influente dos políticos do novo regime, aproximou-se dele, escudado na tradição beletrista lusitana –que admira tanto frases de impacto que jamais admite que idiotias, como a cobrança de coerência, possam empanar seu brilho.

Palavras fortes
Lançado à cena nacional com a nomeação para ministro da Fazenda, Ciro produziu um livro com entrevista a um time qualificado de jornalistas. Na introdução, é apresentado como homem que lutou contra a ditadura... enquanto estudante. Nem se menciona seu passado de "filhote da ditadura" –como ele costumava se referir a seus ex-colegas. Na entrevista, negou peremptoriamente ter sido do PDS –a Arena na abertura. Pressionado, explicou que fora apenas da Arena –o PDS no fechamento.
No cargo de ministro cumpriu o roteiro traçado. Idéias? Projetos? Atos ousados? Nada de anacronismos. Quando a comunicação de massas mistura-se com atraso político, o forte é o slogan. Para Collor, o discurso contra os marajás. Para Ciro, adjetivos fortes, "otários", "canalhas", dizer que pegou fulano "pelos colarinhos", que "mostrou os dentes" para beltrano.
Depois, para mostrar preparo, algum creme de leite subintelectual por cima –como a definição sobre os três "cratas" que compõem a crise brasileira, que vive repetindo sem parar, e a apresentação, como "curso de pós-graduação", do cursinho livre que a Universidade de Harvard preparou para políticos latino-americanos.
O ministro não transgrediu nada, a não ser as boas maneiras. Mas, com boa repercussão eletrônica, foi o que bastou. Senhoras de alma bondosa encheram-se de ternura pelo ministro com cara de menino. Grupos basbaques caíram de joelhos, com olhos rútilos de emoção –como diria o cronista Nelson Rodrigues–, crentes de que finalmente encontraram "nosso homem sincero".
Em sua despedida para os Estados Unidos, amparado em mídia pesada, o "homem sincero" foi lançado candidato a presidente por duas forças significativas: ACM e Paulo Maluf.
Enfim, um Collor confiável.

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