São Paulo, domingo, 8 de janeiro de 1995
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Bendita da Silva

COSETTE ALVES
–QUAL FOI O MOMENTO MAIS DIFÍCIL? QUAL A GRANDE DOR?

Benedita da Silva
–Entre a fome e uma noite sem dormir na tarimba (uma cama onde você coloca uma tábua), o mais difícil foi a fome. Não ter comida para comer. Mas o que mais doeu foi ter um filho que morreu e faltar dinheiro para enterrá-lo. Isso abala a diginidade das pessoas. Me chocou muito.
–Qual o momento inesquecível?
–O dia em que eu cheguei numa fábrica e disseram: "Você está empregada". Era uma fábrica de bolsas e cintos na rua Real Grandeza, não existe mais. Tinha 11 anos e passei por 14. Sempre fui muito grandalhona, e falei que tinha 14 anos porque precisava do emprego. Só aceitavam a partir de 14 anos.
–E o grande medo?
–Eu tenho medo da fome. Eu já passei. Você não pensa, você rola numa cama, você tem pesadelos. É um negócio que o ser humano tem que estar com um grau de espiritualidade muito grande para não meter a mão em alguma coisa e sair pegando.
–Dá para você traçar um perfil de si mesma?
–Eu não me divido, eu sou uma. Eu faço conversa com a Bené menina de rua, eu faço conversa com a Bené panela vazia, eu faço conversa com a Bené subindo as escadarias do Chapéu Mangueira, eu converso com a Bené pisando nos tapetes vermelhos de Mitterrand (presidente da França), eu converso com a Bené na Tribuna do Congresso, eu converso com a Bené com a lata d'água na cabeça. O perfil da Bené. Ela aceita com naturalidade as coisas. Sou feliz com tudo que sou. Mas não consigo ficar prosa.

PRECONCEITOS E OUTROS CONCEITOS
–Em algum momento de sua vida já teve vontade de não ser da raça negra?
–Eu já tive essa vontade quando criança. Era tão maltratada... Puxavam os meus cabelos encarapinhados e as minhas trancinhas, me chamavam de maria mijona, me chamavam de macaca –continuam me chamando–, me arrasavam por conta de ser negra. E eu criança não entendia isso, tinha raiva. Eu me lembro que um dia briguei com Deus. Falei para Ele, eu não tenho culpa, você me fez negra para eu ser maltratada? Depois tomei consciência da negritude. Na verdade, eu era maltratada por crianças, por conta da cultura que recebiam dos adultos.
–Qual o maior preconceito que você tem enfrentado?
–O racismo e o machismo. E eu os enfrento de várias formas. O ostensivo, que as pessoas dizem na cara, "macaca negra"! Ou "mulher não deve fazer essas coisas"...
–O que fazer para acabar com os apartheids no Brasil, o social e o racial?
–Do ponto de vista político, ainda se tem alguma formulação com relação ao apartheid social. Mas ao apartheid racial, não. Porque nas concepções teóricas da intelectualidade brasileira, a questão é social. Pensam que na medida em que você resolver o problema social, se resolve o problema racial. Não é verdade. Só os negros conscientes politicamente e que têm ascensão social sabem que quanto maior a ascensão social, maior a discriminação. Porque ele começa a entrar num espaço que antes não era dele. Ou ele se posiciona como negro, se coloca, ou é absorvido pelo processo de branqueamento. Aí ele perde a identidade porque um outro começa a dizer que o ideal da luta contra o racismo não existe, para deixar isso de lado. E o que fazer? Denunciar. Fiscalizar. Propor políticas. Porque não se tem uma política. Vive-se o mito da democracia racial. Todo mundo acha que aqui não tem racismo. Aí ninguém cuida disso.

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