São Paulo, quinta-feira, 12 de janeiro de 1995
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Górecki faz música sacra com política

LUÍS ANTÔNIO GIRON
DA REPORTAGEM LOCAL

Dois lançamentos em CD encenam a música no palco político do ex-bloco soviético.
O violinista Maxim Vengerov e o violoncelista e maestro Mstislav Rostropovich, ambos russos, interpretam concertos para violino de dois compositores que se curvaram parcialmente ao comunismo (leia texto abaixo).
O outro disco, gravado em abril do último ano, traz obras corais a capela de um apóstata oculto do regime militar polonês: Henryk Mikolaj Górecki (prouncia-se gurétski), 61.
Górecki é o compositor erudito atual mais popular do mundo. Suas obras completas (65 opus) estão sendo lançadas como objetos de consumo rápido.
Faz uma música –plana, extática, quase destituída de variações– que tem uso na terapia mística de um público falto de fé. As pessoas querem devorar um som religioso que não podem mais agregar às suas próprias crenças. É um substituto sublimatório.
Nada melhor que peças corais para satisfazer o anseio. O CD traz o "Miserere, Op. 44", de 1981, "Amen, Op. 35", de 1975, "Euntes Ibant et Flebant, Op. 32", de 1972, "Wislo Moja, Wislo Szara, Op. 46", de 1981, e a coletânea de canções polonesas "Szeroka Woda", de 1979.
Nada indica facilidade nas peças. São povoadas de escalas modais alteradas por dissonâncias extremas. A lentidão pode fazer dormir, se o ouvinte não prestar atenção nas melodias. Estas oscilam da meditação ao soco, das notas sustentadas ao espasmo rítmico.
O músico renega o uso terapêutico de sua obra. "Não componho para a massa", diz.
Se hoje as peças corais são ingeridas como remédio para a ausência de Deus, no período comunista exerciam função subversiva. Não porque Górecki sempre demonstrou ser católico e tonal, mas pela maneira como conseguiu converter conteúdos políticos em preces. Tal transfiguração incomodava e, ao mesmo tempo, paralisava a máquina da censura comunista.
Górecki fez toda a carreira à sombra do regime. Começou a apresentar as primeiras obras na década de 50. Desde o início, dedicou-se ao gênero sacro e às composições para coro e orquestra. Recebia encomendas de Varsóvia, mas, simultaneamente, cultivava suas convicções.
Obteve êxitos paroquiais até que, em 1992, chegou às paradas de sucesso pop com a "Sinfonia nº 3", interpretada pela London Sinfonietta e a soprano norte-americana Dawn Upshaw. A obra calhou com os desejos do público.
Evidenciou-se que Górecki havia influenciado a new age e a inspiração do estoniano Arvo Pãrt, até então em moda. Mas tanto uma quanto outro reduziram os pressupostos góreckianos ao uso funcional. Górecki se impunha com a força de fonte.
Na transposição de um meio cultural para outro, perdeu-se o aspecto originário: a refutação da política pelo sujeito. Ouvi-lo sem isso é não entendê-lo.
O uso do tempo lento e o apoio num único acorde caracterizam "Amen" e "Euntes Ibant et Flebant" –extraído do "Livro de Salmos". As peças folclóricas são reestruturadas de maneira a fugir do modelo jdanovista, em vigor na Polônia até os anos 70.
A fé no "Miserere" é atributo subjetivo. O compositor escreveu a obra depois do massacre de membros da facção rural do Solidariedade em Bydgoszcz por 200 milicianos em março de 1981. O episódio é dissolvido num extenso pedal em lá menor sustentado por vozes masculinas em uníssono.
Górecki consegue esvaziar a um só tempo (largo) a política e a religião pela intercessão da subjetividade. Põe no lugar do vazio uma música superior como única possibilidade de paraíso em tempos pós-utópicos.

Disco: Miserere
Intérpretes: Coro da Sinfônica de Chicago, Coro da Ópera Lírica de Chicago e Lira Chamber Corus
Lançamento: Warner Music
Quanto: R$ 20,00 (o CD, em média)

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