São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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Miseráveis cruzam o caminho de FHC

CYNARA MENEZES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente Fernando Henrique Cardoso tem outros vizinhos além do vice Marco Maciel: os favelados da "invasão dos catadores de papel".
Os "vizinhos" vivem num amontoado de barracos encravado no caminho que vai do Palácio da Alvorada ao Palácio do Planalto, residência e local de trabalho do presidente.
Entre árvores como sucupiras, paus-terra, pequizeiros e ipês que o presidente aprecia diariamente da janela do carro na Via Palácio Presidencial, é possível ver os pedaços de plástico azul e preto que servem de teto para os barracos.
Acenos
Na sexta-feira, 9h, como fazem todos os dias, sete crianças esperavam à margem da pista para ver Fernando Henrique passar. O comboio passou a 80 km/h. O presidente não viu e não respondeu ao aceno dos "vizinhos".
Como o próprio nome já diz, quem mora ali vive da coleta de papéis e sucata. A invasão existe há quase dez anos. Todas as 13 famílias já receberam avisos do governo local para deixar a área (leia reportagem abaixo). A maioria saiu e voltou.
O pedreiro desempregado Antonio Carlos da Silva, 29, recebeu a última notificação no dia 26 de dezembro. A administração regional de Brasília dava 24 horas para que fosse embora junto com a mulher, Marlene, 28, e os quatro filhos.
"Eu não fui porque não tenho para onde ir. Venho andando de invasão em invasão já tem mais de cinco anos. Agora já tem dois anos que a gente está aqui. Não vou sair não", diz Antonio Carlos.
Ele fica em casa –um barraco de 3m por 4m com apenas uma cama e um sofá sem estofamento, onde dormem as crianças– cuidando dos filhos enquanto Marlene sai com o mais novo, Tiago, de apenas um mês, e o mais velho, Bruno, 7, para pedir esmolas.
A mulher do pederiro chega a arrecadar até R$ 20,00. Às vezes, como na segunda-feira passada, apenas R$ 2,00. Na volta, passa diante do Palácio do Planalto. Marlene não acredita em seu novo "vizinho".
"Esse pessoal quando entra vai cuidar primeiro das coisas deles. Não tenho esperança, não. O outro não fez nada pela gente", diz.
Equilibrando uma lata d'água na cabeça pela mesma estrada onde Fernando Henrique passa em um Omega preto, Vanda Oliveira, 22, três filhos, pensa diferente.
"Tenho fé em Deus que ele vai melhorar. Vai arranjar terra para a gente morar", afirma Vanda, uma das primeiras moradoras da invasão. Viúva, ela veio de São Luís (MA) há dez anos.
Anderson Oliveira, 5, puxa uma carroça com quinze latas vazias até o quartel do Corpo de Bombeiros, a 500 metros do local da invasão, que fornece água para o dia-a-dia dos favelados.
A mãe do menino, Raquel, 22, puxa o carro na volta, com as latas já cheias. Ela nasceu em Brasília, estudou até a 4ª série do primeiro grau, morou no interior da Bahia e voltou para a capital federal com o mesmo sonho de melhorar de vida dos outros.
"Aqui é melhor porque tem água. Em Irecê a água é salgada que não tem sabão que chegue", diz Raquel. O marido, Edson Vieira, 31, é pintor de paredes, mas vive da cata de papel.
Os pais de Jucilene Pereira, 22, quatro filhos, nunca se conformaram por a filha ter deixado Ibotirama (BA) para morar com o marido no barraco vizinho aos que habitam os centros de poder da capital.
"O ganho lá é muito pouco. Aqui a gente não passa necessidade. As pessoas dão coisas", explica Jucilene sobre sua mudança para Brasília enquanto anda com o filho mais novo, de 5 meses, rumo ao hospital. Ele estava desidratado.
Sinal da cruz
Rita Maria da Conceição é outra "vizinha" de FHC. Deitada em uma cama, Rita, 76, paraplégica, está doente e não pode sair com o neto Josinaldo, 11, para pedir dinheiro em sua cadeira de rodas.
Todo o sustento de Rita vem da filha Maria Edilene Alves, 34, que puxa uma carroça de papel ajudada pela égua "Branquinha" para manter, além da mãe, os seis filhos pequenos e uma neta.
A família veio de Irecê (BA) há cinco anos, em busca de vida melhor em Brasília. "Não aguentava mais trabalhar na roça", diz Edilene. "Lá eu ganhava R$ 3,00 para arrancar toco o dia todo".
Na capital federal, apesar das dificuldades, acha que vive melhor. Há uma semana, Edilene chegou no barraco às 20h carregando 450 kg de jornal e não tinha nada para comer.
"Um dia com fome, dois, não mata. No dia que tem o que comer, nós come (sic). Quando não tem nós dorme (sic) com o 'pelo sinal' (referência ao sinal da cruz, gestual católico)", diz a catadora de papael.

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