São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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Nada mais permanente do que o provisório

CELSO RIBEIRO BASTOS

O cerne do Estado de Direito repousa na divisão levada a efeito entre o que cabe ao Legislativo e ao Executivo realizar. Ao primeiro, fazer leis e ao segundo, cumprí-las. É certo que essa divisão absoluta teve de sofrer alguns abrandamentos nesses dois últimos séculos em que é aplicada. O Executivo conseguiu abiscoitar, ainda que em pequena parcela, alguma faculdade que pudesse garantir a solução de problemas emergenciais, editando atos semelhantes às leis.
O Brasil conheceu, antes da revisão constitucional, os famigerados decretos-leis, tidos como símbolo do arbítrio. Surpreendentemente, quando todos pensavam que este instituto seria banido, acabou-se por substituí-lo pela medida provisória. Aos olhos ingênuos do legislador, essa seria uma medida totalmente ineficiente, visto que foi feita para vigorar por apenas 30 dias. O constituinte antecipava a inércia legisladora, pois sabia que durante esse prazo nada seria aprovado.
Mas os fatos se rebelaram. Embora o texto da Carta Magna deixe claro o período de vigência de uma medida provisória e não faça previsão de qualquer possibilidade de prorrogação, atingiu-se o mesmo objetivo pela via fraudulenta da reedição. É óbvio que se fosse intenção do constituinte autorizar essa forma de prolongamento de vigência, ele já o teria permitido através da prorrogação. Aliás, essa seria a forma mais adequada, do ponto de vista técnico.
Hoje, a prática de reeditar medidas provisórias enraizou-se no país, por falta de impugnação a esse uso inconstitucional. Pode-se dizer até que se jurisdicisou. O fato é que, por este caminho tortuoso, concedeu-se uma violenta migração do poder de fazer leis para o Executivo.
São raras as leis editadas pelo Legislativo desde 88, enquanto que já batemos o número de 800 medidas provisórias – não vou me aventurar a dar o número preciso, já que, a esta altura, novas medidas estão sendo editadas ou reeditadas.
O próprio êxito do governo Itamar Franco –o Real– repousa numa medida provisória que ainda não foi convertida em lei. Isto rebaixa o nível institucional do país. O fenômeno passa despercebido sob esse manto tênue de jurisdicidade que cerca o assunto.
O fato irrefutável é que, no Brasil de hoje, a exemplo do que acontecia com as ditaduras de algumas republiquetas sulamericanas, quem edita as leis é o chefe do Executivo do momento.
É certo que o Legislativo tem procurado ocupar espaço em outras áreas, levando a efeito CPIs, aprovando designações para cargos públicos, e realizando uma série de outros trabalhos que foram criados pela constituinte de 88, com o propósito de fortalecê-lo. Acontece que nada disso compensa a perda da sua função essencial, que lhe empresa o próprio nome: fazer leis.
É necessário, como passo indispensável para a constitucionalização plena do país, que a função normativa venha a ser exercida em caráter formal pelo Legislativo.
Esse retorno tem de vir no bojo de uma negociação ampla. O próprio Congresso deverá fazer concessões, no sentido de moralizar seu funcionamento, adequar as suas estruturas e contemplar mecanismos que possam assegurar o exercício do poder dentro das funções que dele se espera. O Executivo, em troca, poderá obter o apoio de medidas para execução de programas de Governo.
E, dessa ampla negociação, todos sairão ganhando. O Executivo cumprirá os seus propósitos governamentais, o Legislativo recuperará a sua função de, em tese, fazer leis e o Estado, como um todo, irá recuperar a sua condição de Estado de Direito.

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