São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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O fumante, este marginal moderno

OSIRIS LOPES FILHO

No ocaso de sua gestão no Ministério da Saúde, o então ministro Henrique Santillo assinou, no dia 29 de dezembro do ano passado, a portaria nº 2.169, publicada no "Diário Oficial" de 2 de janeiro deste ano, estabelecendo regras para a publicidade dos produtos derivados do tabaco.
Inegavelmente é uma portaria modelar. É exemplo excelente da incompetência, arrogância, oportunismo, ilegalidade e irresponsabilidade de que certos gestores públicos se utilizam, para marcar posição, aproveitando a boa-fé da população e os modismos e escapismos de determinada época.
O combate ao fumo tem se tornado um dos assuntos preferidos do moralismo pequeno-burguês. Os que o combatem, do ponto de vista da saúde individual e pública, o condenam com tal intensidade e virulência e, por que não dizer, com tal chatice, que parece ser o principal agente a conspirar contra a eternidade dos fumantes, ativos e passivos.
Câncer, enfisema, asma, doenças do coração são algumas das moléstias cantadas como ocasionadas pelo tabaco, a impedir que os fumantes tenham vida eterna. Sim, apontam com tal veemência essas enfermidades a causar a morte dos fumantes que parece que, abandonando esse vício deletério, o fumante teria vida eterna.
Não diria que a campanha contra os fumantes e o fumo tenha a intensidade que a história registra da perseguição aos judeus e aos ciganos, mas, pouco a pouco, a marginalidade do fumante vai se tornando fato evidente.
As restrições são inúmeras. Em breve, o fumante vai se tornar inimigo público, submetido à execração da comunidade. Já é objeto de sermões virtuosos. Vocações frustradas para o púlpito aproveitam as oportunidades para, denunciando os males do fumo, vangloriarem-se da virtude da abstinência tabagista. E os convertidos? Esses, os mais fanáticos. E chatos.
Outro dia, ouvia um convertido descrever a excelência do seu condicionamento físico, pulmonar, cardíaco e olfativo. Dizia que, após abandonar o fumo, tinha ganho um novo sentido. O seu olfato lhe possibilitava distinguir com precisão os cheiros, odores e perfumes existentes nas coisas.
Não lhe invejei esse apuro olfativo. Há no nosso país alguns cheiros que é melhor não sentir, protegido pela insensibilidade olfativa-tabagista, pois não é só no reino da Dinamarca em que há algo de podre no ar.
Como ex-integrante de uma comissão interministerial que examinou as mazelas do Ministério da Saúde, fico arrependido de não ter proposto, na ocasião, nas recomendações finais do relatório apresentado ao presidente Itamar, que mandasse selecionar os portadores desses narizes puros e absolutos e sem a mácula da fumaça, para serem contratados como auditores farejadores que, cheirando as repartições públicas, descobrissem o fedor das negociatas, corrupções, desvios que por lá tivessem ocorrido ou fossem ocorrer.
Devo ter parecido ao leitor impregnado da calma e da tranquilidade dominical, violento, radical ou, pelo menos, candente ao classificar, lá em cima, a referida portaria ministerial. Penitencio-me, pois ficou incompleta a classificação. Faltou mencionar a sua notável e expressiva contribuição ao besteirol nacional.
Invoca a portaria, como fundamento jurídico, os artigos 22, Inciso 29 e 24, Inciso 12, todos da Constituição Federal. É elementar que tais artigos atribuem à União competência para legislar sobre determinadas matérias.
No artigo 22, as matérias elencadas são da competência privativa da União. O seu inciso 29 possibilita à União disciplinar, por lei, a propaganda comercial. O artigo 24, inciso 12, permite à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislarem concorrentemente sobre proteção e defesa da saúde.
Ora, legislar é fazer lei. No regime democrático compete ao Congresso Nacional ou às Assembléias Legislativas elaborar as leis. Ministro da Saúde não detém tal competência, posto que não lhe cabe elaborar leis e tampouco legislar através de portaria. Cabe-lhe, sim, executar e fazer executar as leis do país.
Invoca, ainda, o artigo 220, parágrafo 4º da Constituição federal, que estabelece que lei federal fixará as restrições à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias e conterá, sempre que necessário, advertências sobre os malefícios decorrentes do seu uso. Tudo vai depender da existência de lei federal dispondo a respeito.
Nos regimes democráticos é fundamental que se respeite a lei. E que não se invada a competência alheia, embora as intenções sejam as melhores. A propósito, de boas intenções o inferno está cheio e o diabo já não aguenta mais.
Há um ponto da portaria que é de grande humildade, quando afirma que a advertência do Ministério da Saúde "fumar é prejudicial à saúde não atinge plenamente o objetivo de alertar a população para os diversos malefícios advindos do vício de fumar".
Acho que essa campanha atingiu plenamente seus objetivos. Há um amplo complexo de culpa dos fumantes pairando nos ares do país. Além disso, as estatísticas comprovam que a juventude condena o ato de fumar, que é considerado "careta".

Parte para outra.
Pessoalmente, senti-me vulnerado e atingido no meu direito de cidadão livre, que vive em um Estado democrático, pela proibição contida no seu artigo 7º. "Não poderão se apresentar portando cigarro aceso ou fumando os entrevistados de programas jornalísticos, ou quaisquer personagens de programas transmitidos ao vivo."
Entretanto, senti-me parcialmente aliviado ao perceber que portar cigarro virgem, apagado, pode. Charuto ou cachimbo também pode, virgem, apagado ou mesmo aceso.
Vejo que o Jô Soares, poderá continuar oferecendo aos seus convidados os elegantes e saborosos charutos cubanos, uma vez que estes não foram contemplados na proibição.
Agiu bem o ministro Jatene em suspender a eficácia de tal ato. É melhor esclarecer, educar e orientar a população do país, do que proibir através de ato ilegal.
Vamos construir um país juntos, fumantes e não-fumantes, para que a tolerância, a fraternidade, a compreensão e a solidariedade sejam permanentes e firmes e não tenham a duração e o capricho da fumaça que esvoaça leve no ar, depois de uma tragada.
Que o meu vizinho possa dizer: "é melhor que haja a fumaça do seu cigarro do que as queimadas de nossas florestas". Ou ainda. "basta-me sentir o cheiro do seu fumo, poupando-me de fumar". E que se possa sonhar que um dia teremos um país justo, sem divisões e sem perseguições.

OSIRIS DE AZEVEDO LOPES FILHO, 55, é professor de Direito Tributário e Financeiro na Universidade de Brasília, advogado e ex-secretário da Receita Federal.

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