São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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OS NEGROS E O FUTEBOL

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

O afastamento do futebol brasileiro de suas raízes populares foi uma das causas de sua decadência nas décadas de 70 e 80, quando fracassou em cinco Copas do Mundo seguidas (1974 a 1990).
A conclusão é de pesquisa desenvolvida entre 1993 e 1994 pelo Núcleo de Sociologia do Futebol da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.
O estudo analisou a presença de jogadores negros e mestiços no primeiro centenário do futebol no país, completado no ano passado.
O resultado parcial foi apresentado no fim de 1993 no Congresso Internacional de Cultura Negra, na Martinica, realizado por iniciativa da Université de Paris 4-Sorbonne.
O coordenador do estudo, o sociólogo Maurício Murad, 46, carioca de origem árabe, afirma que a presença de 6 negros ou mulatos entre os 11 titulares da seleção no Mundial dos EUA contribuiu para a conquista do tetra. "Em 1990, havia dez brancos no time."

Folha - O que levou o Núcleo de Sociologia a estudar a presença negra no futebol brasileiro?
Maurício Murad - O conhecimento do Brasil passa pelo conhecimento do futebol. O futebol é a grande metáfora da cultura brasileira. E conhecer o futebol implica conhecer a história do negro no esporte.
Folha - Qual foi o período de auge dos jogadores negros?
Murad - Entre 1950 e 1970, quando conquistamos três Copas e obtivemos um vice-campeonato. É o auge da negritude no futebol, com jogadores como Zizinho, Pelé e Garrincha.
São jogadores fundamentais para o estilo brasileiro de jogar. Consolidam o estilo brasileiro, inaugurado por Fausto, Leônidas da Silva e Domingos da Guia.
Folha - Como foi a evolução da influência negra no futebol?
Murad - São cem anos de história social. Dividimos a história em cinco períodos. O primeiro é inaugurado em 1894 pelo fundador do futebol no Brasil, Charles Miller, e vai até 1923, quando pela primeira vez um clube com jogadores negros, o Vasco, conquista o Campeonato Carioca.
Folha - Como se caracteriza essa época?
Murad - É um período elitista, racista e proibitivo. Mestiços, brancos pobres e negros não podiam chegar aos clubes. Era o "futebol de punhos-de-renda".
Folha - Poucos anos após a abolição da escravatura (1888), quais eram as dificuldades para os negros?
Murad - Nos anos 20, se exigia assinar o nome e escrever o local de trabalho nas súmulas. Muitos jogadores não tinham sido educados. Eram analfabetos. Os do Vasco tinham aula noturna de primeiras letras. Mas se um pobre não tinha emprego, não podia jogar.
Folha - Qual a segunda fase identificada pelo estudo?
Murad - Ela vai de 1923 até 1933, quando é introduzido o profissionalismo. É um período híbrido, em que a presença negra sai da clandestinidade.
Folha - O que levou o futebol a deixar de ser amador?
Murad - Há dois motivos. O primeiro foi a necessidade de se pagar aos jogadores para evitar o êxodo de craques para a Itália. Em segundo lugar, o profissionalismo veio para permitir o ingresso dos negros nos times, fortalecendo-os.
Era preciso transformar os atletas em empregados. Como sócios, eles não entravam nos clubes. A terceira fase foi entre 1933 e 1950.
Folha - Como se caracterizou?
Murad - Foi um período de transição, com a consolidação de um estilo brasileiro. O estilo não é só negro –Zico e Gérson não são negros. Mas nosso estilo tem fortes características negras.
Folha - Por quê?
Murad - Porque a escola negra do futebol no Brasil mostra um corpo mais artístico do que esportivo. Tem jogo de corpo, ginga, criatividade. É o que Gilberto Freyre chamava de "songamonga".
Folha - Como nasceu esse "corpo negro"?
Murad - Desde os rituais tribais africanos, o corpo é lugar da expressão cultural africana. Os negros vieram como escravos. Seu corpo era unidade semiológica da opressão.
Folha - Aí aparece a capoeira.
Murad - Exato. Quando os negros começam a jogar futebol, as elites começam a restringir o espaço em que eles podiam se movimentar, ficando em lugares restritos. Sem espaço, ele desenvolve a habilidade.
Folha - A quarta fase da presença negra no futebol, segundo o Núcleo de Sociologia, começa em 1950, quando jogadores negros ou mulatos são culpados pela derrota na Copa.
Murad - Culparam Bigode, Barbosa e Juvenal. Mesmo em 1958, conforme contava João Saldanha, haveria uma recomendação da Confederação Brasileira de Desportos para evitar negros.
Garrincha só foi escalado porque Nilton Santos e Didi (jogadores) falaram com Feola (técnico).
Aí começou a glória do futebol brasileiro. Essa fase vai até 1970. A quinta e última fase que estudamos se localiza entre 1970 e 1990.
Folha - Quando o futebol brasileiro acumulou fracassos.
Murad - É um período de reelitização. De acordo com um estudo, na década de 80 foram eliminados 10 mil campinhos de futebol no país, um crime hediondo.
Folha - O perfil do jogador mudou?
Murad - Houve aumento da procura de pessoas de classe média pelo futebol. Com menos campinhos, destruiu-se um celeiro através do qual camadas menos favorecidas pavimentavam o caminho para o futebol.
Folha - Por que isso ocorreu?
Murad - Devido à urbanização desordenada, pela especulação imobiliária. Saliento que essa não é uma visão racista às avessas. Falcão, Zico e Sócrates teriam que jogar em qualquer seleção.
Folha - Mas o Brasil venceu em 1994.
Murad - Na seleção de Lazaroni, em 1990, havia dez brancos e um mestiço, Muller. Na seleção de 1994, havia cinco brancos, quatro mestiços e dois negros.
Folha - Por que a mudança?
Murad - Em 90, chegamos ao fundo do poço. Houve uma reviravolta nascida nos anos 80, quando os grandes clubes começaram a construir núcleos na periferia. A ausência de negros na seleção era a ausência da brasilidade.
Com os caçadores de talentos na periferia, nosso futebol volta a ser o que era. Quando o futebol brasileiro assume suas raízes populares, vai bem. Quando não faz, vai mal.

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