São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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Domingos da Guia afirma que nos anos 30 'nem o Pelé jogaria nos clubes mais ricos'

"Eu vi Fla-Flu sem nenhum preto em campo"

MÁRIO MAGALHÃES
DA SUCURSAL DO RIO

Três personagens marcaram a ascensão dos jogadores negros no futebol brasileiro na primeira metade do século: os atacantes Friedenreich e Leônidas da Silva e o zagueiro Domingos da Guia.
O primeiro morreu em 1969. O segundo, internado numa clínica em São Paulo, esqueceu os anos em que era chamado de "Diamante Negro".
Domingos da Guia, 83, mora num apartamento simples no bairro do Méier (zona norte do Rio), junto com um filho e sustenta-se com a aposentadoria de fiscal de renda do Tesouro Nacional.
Embora diga que já apagou "quase tudo" da memória, Domingos gosta de lembrar os tempos da virada social no futebol do país.
Jogava tanto que ficou conhecido como "Divino", o maior zagueiro da história do país.
Ao fim de cada caso narrado, como na entrevista à Folha, Domingos repete sempre: "Fui muito feliz no futebol".
(MM)

Folha - Quais as principais lembranças da sua carreira?
Domingos da Guia - Eu fui muito feliz no futebol. Era um dos bons, graças a Deus. Joguei de 1929 a 1949. Comecei e terminei no Bangu.
Folha - Qual foi a sua maior conquista?
Domingos - O tricampeonato nos anos 30. Em 1933, ganhei o Campeonato Uruguaio pelo Nacional. Em 1934, o Carioca pelo Vasco. Em 1935, o Argentino pelo Boca Juniors. Esse tri me deixa muito feliz.
Folha - O senhor começou a jogar antes da introdução do profissionalismo, em 1933. Como os jogadores eram remunerados?
Domingos - Havia bicho. Se perdesse ou empatasse, o bicho era menor. Se ganhasse, era bom. Se o time ganhava muito, aumentavam as rendas e o bicho.
Folha - Era um bom dinheiro?
Domingos - Quando acabava o jogo, o dono da fábrica, o doutor Guilherme da Silveira, distribuía o bicho, mas eu não apanhava. Ia lá na fábrica e pegava com ele uns 500, 1.000 réis. Mas ele morreu e acabou a mamata.
Folha - O senhor ganhou muito dinheiro no futebol?
Domingos - Ganhei dinheiro no Vasco, na Argentina e no Uruguai. Hoje o futebol está melhor. Futebol é bom, dá oportunidade à criatura.
Folha - Os clubes da periferia, com alguns jogadores negros, eram prejudicados pelos árbitros, todos brancos?
Domingos - A arbitragem sempre ajudava os clubes da cidade. O Bangu sempre foi muito prejudicado. Mas em Bangu a torcida invadia o campo se precisasse. Os torcedores se enchiam de pedras e atiravam tudo em cima dos árbitros.
Folha - O racismo era explícito nos clubes?
Domingos - No Fluminense, isso aqui (aponta a cor da pele) não entrava. Pretos só jogavam no Bangu, no Madureira, no Bonsucesso. Depois o Vasco aceitou mulatos. Naquela época, o Pelé não jogaria nos clubes ricos.
Eu vi Fla-Flu sem nenhum preto em campo. Quando eu cheguei no Bangu, já havia uns mulatinhos rosados. Não havia analfabeto no Fluminense.
Folha - É verdade que muitos jogadores negros tinham dificuldade para assinar o nome nas súmulas?
Domingos - O pessoal assinava devagar, treinava em casa.
Folha - A propósito de Pelé, qual a sua opinião sobre a nomeação dele como ministro extraordinário dos Esportes?
Domingos - O mérito é dele. Ele quis assim. Teve um passado brilhante como jogador. Foi craque. E não se esqueça de que preto nunca foi aceito nesse país.
Folha - O senhor foi vítima de preconceito racial na Argentina e no Uruguai?
Domingos - Não. Lá era uma beleza, todos queriam me ver jogar. A torcida dos outros clubes sentia raiva, inveja. A discriminação era com jogador preto-preto. Mulato como eu era aceito nos clubes.
Folha - Apesar de forte, o senhor era um zagueiro avesso à violência.
Domingos - Nunca fui de dar pontapé. Desde o início resolvi jogar limpo, mesmo contra grandes atacantes. Na minha época, o grande centroavante era o Leônidas. Como meu filho Ademir (ex-jogador do Palmeiras), é outro que trocou o Rio por São Paulo. Não dá para entender. Aliás, meu filho também nunca deu pontapé em ninguém.
Folha - Não seria melhor o senhor ter aproveitado sua técnica em outra posição?
Domingos - No fundo, acho que sim. Eu pegava a bola atrás e andava com ela uns 20 metros antes de passar. Eu não tinha que ser beque, mas um meia-direita. Ainda mais que se jogava mais livre naquela época. Perto de você só havia um adversário.
Folha - Quais foram os melhores centroavantes que o senhor enfrentou?
Domingos - O grande craque da época era o meu amigo Leônidas. Mas me lembro do Heleno de Freitas. Era brigão, mas bom jogador. Jogava muito, mas eu me dava bem contra ele.

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