São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995 |
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Paula Becker a Clara Westhoff
ADRIENNE RICH
E sim, terei; este filho será meu e não seu, as falhas, se as houver, serão só minhas. Não sabemos, Clara, como fazer para impedir estas coisas, e uma vez que temos uma criança, ela é nossa. Mas, ultimamente, sinto-me por encima de Otto ou de quem seja. Agora eu sei que tipo de trabalho devo fazer. Consome tanta energia! Tenho a impressão de ir em direção a algum lugar, com paciência, sem paciência, em minha solidão. Procuro na natureza por todas partes novas formas, velhas formas em novos lugares, o esboço de uma boca arcaizante, por exemplo, entre as folhas. Eu sei e não sei o que é que busco. Lembra-te daqueles meses no estúdio, juntas, tu com teus braços fortes imersos no barro molhado enquanto eu tentava fazer algo das impressões estranhas que me assaltavam –flores e pássaros na seda japonesa, bêbados que se abrigavam no Louvre, aquela luz de rio, aquelas caras... Sabíamos exatamente porque estávamos lá? Paris te enervava, te parecia excessiva, mesmo assim continuavas a trabalhar... e depois nos encontramos de novo, já casadas ambas, e pareceu-me que você e Rilke estavam nervosos. Notei algo como falta de alegria entre vocês. Claro que entre ele e eu havia dificuldades. Talvez eu sentisse ciúmes dele, para começar, por ter tomado você de mim, talvez eu tenha casado com Otto para preencher minha solidão de ti. Rainer, claro, sabe mais do que Otto, ele acredita nas mulheres. Mas ele se alimenta de nós, como todos eles. Sua vida inteira, sua arte está protegida pelas mulheres. Qual de nós poderia dizer isso? Qual de nós, Clara, não teve que dar o salto para além de nosso ser-mulher para salvarmos o nosso trabalho? ou para salvar-nos a nós mesmas? O casamento é mais só que a solidão. Você sabe: eu sonhei que morria ao dar a luz à criança. Eu não podia pintar ou falar ou mexer-me. Meu filho –penso– sobrevivia. Mas no sonho o curioso era que Rainer escrevia meu réquiem –um longo, belo poema, no qual me chamava amiga. Eu fora tua amiga mas no sonho nada dizias. No sonho o poema era como uma carta dirigida a alguém que não tem o direito de estar solto mas que deve ser tratado com gentileza, como um hóspede que chega na data errada. Clara, porque não terei sonhado contigo? Aquela foto de nós duas –ainda a tenho, você e eu olhando firme nos olhos uma da outra, com minhas pinturas por detrás. Como costumávamos trabalhar lado a lado! E como tenho trabalhado desde então tentando criar de acordo com o plano que traçáramos e que teria afirmado, malgrado tudo, malgrado todos, nosso poder sobre as coisas. Não ocultamos nada porque somos mulheres. Clara, nossa força reside ainda nas coisas sobre as quais conversávamos: como vida e morte dão-se as mãos, a luta pela verdade, nossas velhas juras contra a culpa. E agora sinto a alvorada e o próximo dia. Adoro despertar em meu estúdio, vendo meus quadros subirem à luz. Às vezes sinto que sou eu mesma quem me chuta dentro de mim, que sou eu mesma a quem devo dar de mamar, acalentar... Queria poder ter feito o mesmo por nós duas durante toda a vida, mas não podemos... Dizem que uma mulher grávida sonha com a própria morte. Mas vida e morte dão-se as mãos. Clara, sinto-me tão cheia por ti, quem dentre todos os seres vivos e mesmo que o diga de forma insuficiente, ouvirá o que eu disser e o que eu não posso dizer. Tradução de HORÁCIO COSTA Texto Anterior: Ginsberg foi pioneiro da renascença californiana Próximo Texto: Paula Becker to Clara Westhoff Índice |
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