São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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Lyotard e o silêncio de Heidegger

RUBENS RODRIGUES TORRES FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Auschwitz", "depois de Auschwitz": Lyotard leva muito a sério a indicação de Theodor Adorno, na terceira parte da "Dialética Negativa", de que a brutal irracionalidade evocada por esse nome, esse negativo inassimilável, irredutível à negatividade pacificadora de Hegel, deve conduzir a filosofia à confissão de sua impotência. "Nenhuma palavra que soe do alto, nem mesmo uma palavra teológica," escreve Adorno, "conserva, não transformada, um direito depois de Auschwitz."
Esse é o ponto de partida explícito do principal livro de filosofia de Lyotard, "Le Différend", publicado em 1983, e a ocasião para que este formule seu próprio problema: "E se o que está em jogo no pensamento (?) fosse a dissensão (différend) e não o consenso?"
É por isso que neste seu "opúsculo" (p. 81) de circunstância, publicado em 1988 e traduzido agora pela Vozes, ele pode retomar com tanta adequação e naturalidade a questão proposta pelo germanista Philippe Lacoue-Labarte sobre o silêncio completo de Heidegger, mais inquietante e persistente que sua ligação com o nazismo, a respeito do extermínio dos judeus. Por ocasião da preparação de uma obra coletiva sobre "Políticas do Esquecimento", a que foi convidado, "constatou-se que eu (Lyotard) esquecia menos o esquecimento do que é de praxe." (p. 12)
Não se trata, já se vê, do escândalo do "caso Heidegger" nem da urgência "midiática" (como dizem os franceses) de politizar e julgar. Nem uma tomada de posição nem sequer um convite a tomar posição. A questão, ao contrário, é acolhida num nível já bastante elaborado e tratada em continuidade com uma preocupação que vem de longe.
Assim, ao publicar em 1991 sua ampla explicação de textos da "Analítica do Sublime" de Kant, objeto de seus cursos por vários anos, Lyotard acrescentou-lhe breve prólogo (não reproduzido na edição brasileira) onde o "assunto" daquele livro era condensado na seguinte fórmula: "Estas lições visam isolar, no texto kantiano, a análise de uma dissensão ( différend) no sentimento, que é também a análise de um sentimento da dissensão, e reportar o motivo desse sentimento ao transporte que conduz todo pensamento (inclusive o crítico) a seus limites."
Sempre, portanto, a questão da dissensão, esse conflito indecidível, pela impossibilidade de uma regra comum aplicável aos discursos antagonistas (modelo "Auschwitz"), vivida como sentimento que limita desde sempre o pensar. Eis aí, traçado com nitidez, o contexto em que é preciso situar o interesse do livrinho de agora: aquilo que em Heidegger, o pensador do esquecimento do Ser, é objeto de uma obstinada "oclusão" é justamente o modelo, para Lyotard, do verdadeiramente digno-de-ser-pensado.
Daí a extensão inusitada da primeira parte, que –a pretexto da formação fantasmática "os judeus", que se grafa assim entre aspas, no plural e com minúscula (sabe-se que em francês os patronímicos têm maiúscula)– delineia a amplitude desse quadro. E, por outro lado, a relativa facilidade da segunda parte, que, uma vez dadas essas coordenadas, trata propriamente de Heidegger e discute pontualmente com seus comentadores contemporâneos (entre eles, Derrida, Lacouer-Labarte, Jean-Luc Nancy).
Cabe ao leitor por sua vez acompanhar com vigilância todas as sinuosidades com que Lyotard "fraseia" (não há nada didático, factual ou ingênuo) e arriscar-se momentaneamente por terreno inseguro. Perceber, por exemplo, que ao colocar o afeto inconsciente de Freud ao lado do sublime kantiano não se trata de fundamentar "psicanaliticamente" os resultados fornecidos pela filosofia transcendental, mas de interrogar aquilo que há em comum nessas duas figuras, que apontam na direção de uma estética "anestésica" e de uma anamnese interminável. Uma leitura meditativa, enfim, como convém a enunciados do "gênero reflexivo",e que não se reduz ao resumo de suas conclusões.
Eis algumas delas, citadas literalmente, apenas a título de amostra. Sobre "os judeus": "O anti-semitismo ocidental não é sua xenofobia, é um dos meios para o aparelho de sua cultura (...) defender-se do terror originário, esquecê-lo ativamente. É a face defensiva de seus mecanismos de ataque, a saber: a ciência grega, o direito e a política romanos, a espiritualidade cristã, as Luzes." (p. 35)
Ou então, invertendo o ângulo: "Forçados, mais que guiados, pela nuvem de energia livre que desesperam de compreender ou mesmo de ver, nuvem no deserto do Sinai, (os judeus) não podem assimilar-se –dizia Hannah Arendt– a não ser assimilando também o anti-semitismo." Sobre Heidegger: "Permanecendo estabelecida no pensamento do ser, no preconceito 'ocidental' de que o Outro é o ser, (a desconstrução existencial-ontológica) não tem nada a dizer a respeito de um pensamento de que o Outro é a Lei. (...) Seu silêncio trai o engano pelo qual todo 'saber' se remete ao Outro, sob o nome de verdade do ser. (...) E através desse engano o pensamento de Heidegger se revela, mesmo sem querer, também refém dessa lei. Essa a sua verdadeira ' falta'." (p. 103)
É claro que estas frases, lidas assim fora do movimento do contexto, perdem muito da qualidade que constitui o principal valor deste texto: seu poder de desafiar a obviedade. Ler o livro inteiro, ler e publicar mais Lyotard, independentemente dos assuntos em moda, reconhecê-lo ao lado dos outros grandes pensadores franceses de sua geração –estas seriam propriamente as medidas salutares sugeridas por esta pequena publicação.
No Glossário Bibliográfico, enfim (p. 109), não é verdade que os números entre parênteses, após os itens, "remetem às páginas onde se localizam as referências". Os editores simplesmente não ajustaram essas referências à paginação da edição brasileira.

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