São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Buarque e o Brasil visto de dentro

RICARDO MUSSE
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Caminhos e Fronteiras" toma como fio narrativo e investigativo o exame da vida material dos paulistas durante os tempos coloniais. A reconstituição precisa de hábitos, condutas, técnicas e instituições da época, balizada no quadro mais amplo do intercurso entre culturas heterogêneas, além da óbvia e inestimável contribuição para o estudo da nossa "civilização material", permite que se compreenda melhor aspectos fundamentais da formação social e cultural do Brasil.
Sérgio Buarque de Holanda parte da indagação –aparentemente ingênua, mas decisiva– acerca dos meios e artifícios com os quais as bandeiras enfrentaram o meio hostil. Desde a escolha dos caminhos privilegiando picadas já abertas pelos nativos, passando pelas técnicas de sobrevivência na selva, num leque que vai do conhecimento de plantas que em regiões áridas retêm água ao uso corrente de arcos e frechas como arma, e até na progressiva incorporação de uma sutil e imponderável capacidade de observação e imitação da natureza –em tudo isso, o adventício aparece como tributário da cultura e da civilização indígena.
A modalidade privilegiada por Buarque de Holanda para demonstrar a incorporação pelos europeus de técnicas e expedientes próprios dos nativos, o resgate minucioso e exaustivo dos padrões de condutas, das técnicas e dos utensílios comuns a ambos, bem como a contraprova fornecida pela sua permanência na vida diária do sertanejo, por si só, valem como um tratado antropológico acerca das similitudes entre as culturas indígenas, colonial e caipira.
Não se tem, porém, um corte sincrônico. Ao contrário, trata-se da investigação de um problema histórico. A fronteira cultural gerada pela chegada do europeu, as novas modalidades de convívio, a mistura étnica e a aculturação provocadas por uma situação peculiar, o bandeirismo, na qual o grosso da população masculina se encontrava, à maneira dos indígenas, em perpétua mobilidade, possibilita o exame de uma experiência concreta e efetiva de diluição e recuperação do legado europeu.
A clássica questão da implantação em terras brasileiras de uma civilização adventícia é visada, assim, numa ótica distinta, dentro da qual se privilegia não o litoral, a grande propriedade com seus indivíduos sedentários ou a contribuição africana, mas antes o interior, os caminhos em sua mobilidade e o intercâmbio com a cultura ameríndia.
Tal deslocamento na escolha do objeto e no enfoque, além de reequilibrar ênfases excessivas e unilateralidades presentes na maioria das tentativas de reconstituição histórica de nossa civilização, resgatando aspectos até então ignorados ou pouco estudados, joga nova luz sobre a própria permanência e incorporação da cultura indígena.
A interação histórica e dinâmica dos ameríndios se deu prioritariamente com aqueles que os subjugaram, tomando-os como "negros da terra". Assim, apesar das intenções piedosas dos jesuítas e de algumas proibições emanadas pela corte, foi paradoxalmente –numa versão dialética da relação senhor e escravo– através de seus exterminadores que a cultura indígena sobreviveu.
Além disso, a atenção ao mundo paulista e bandeirante desmente uma das teses mais caras da nossa formação econômica: a da existência de uma dicotomia –eivada pela polaridade atividade/passividade– entre centros dinâmicos, onde prevalece a empresa e a lógica econômica mercantil, e áreas de subsistência.
O dinamismo expansionista da gente paulista não só ampliou as fronteiras do que veio a ser o Brasil, mas também gerou formas e empreendimentos –bandeiras, tropeiros, monções, lavoura cafeeira– que lhe permitiram sair na frente quanto se tratou da industrialização e da implantação do moderno capitalismo.
Ao resgatar essas formas e empreendimentos, destacando tanto a novidade do cálculo e da previdência burguesa quanto a persistência do espírito de aventura, "Caminhos e Fronteiras" –além de aprofundar a investigação de dois pares centrais de "Raízes do Brasil", o trabalhador e o aventureiro– identifica fatores culturais ssenciais para a compreensão da nossa formação social, logo, do próprio capitalismo.

Texto Anterior: Lyotard e o silêncio de Heidegger
Próximo Texto: Contra o sapo da modernidade
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.