São Paulo, domingo, 15 de janeiro de 1995
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Serra viu a vaca

CARLOS HEITOR CONY

RIO DE JANEIRO – Nem tudo está perdido. Dou a ímpia mão à palmatória. Pela primeira vez admito que a alacridade do novo governo se justifica e que realmente chegamos ao futuro, ao Primeiro Mundo e mais chegaríamos se houvesse onde chegar.
O ministro do Planejamento, suponho que vacinado e maior de idade, teve afinal a sua epifania, a sua estrada de Damasco, o seu encontro definitivo com a modernidade: viu uma vaca.
Não se tratava de um vaca mítica, cuja garupa palustre e bela foi cantada na "Invenção de Orfeu" e lembrada por mim em crônica recente. A vaca que o Serra viu foi uma vaca comum, simples e belamente vaca, balaio de ervas, alimentícia, uma vaca no uso e gozo de sua função de vaca.
Homem de cidade, intelectual que dorme pouco e pensa muito, até domingo passado o ministro não tivera vagares nem curiosidade para ver uma vaca. Evidente que muitas vacas cruzaram seu caminho, na curva de uma estrada, num presépio de igreja, num filme pastoral de John Ford, até mesmo num açougue, já fatiada para a cesta básica.
Zé Serra não dispunha de espaço mental para as vacas, para ver como elas são e de que são feitas. Em sua cabeça, vaca devia ser uma instituição, uma categoria aristotélica, uma entidade esotérica como, para mim, é a teoria dos quanta, a cibernética e o legado cultural do Elvis Presley.
Felizmente houve a vaca e o ministro. Encarregado de planejar nosso futuro, ainda bem que José Serra tomou conhecimento da vaca em início de gestão. Quando agora se sentar à mesa dos Grandes Conselhos, ele terá um fato novo para incorporar ou ameaçar seus pares, muitos dos quais, pelo jeito, nem imaginam o que seja e para que serve uma vaca.
José Serra viu a vaca –é uma revelação, um ponto de não-retorno na história do nosso planejamento público. E, seguramente, será o anúncio de que ele não deixará sua última descoberta ir para o brejo.

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